Pelo empoderamento sexual feminino

Sexo envolve respeito e dignidade, e uma vida sexual infeliz não deve ser uma carga para a mulher

“Parece que o maestro do sexo na humanidade foi sempre o homem. A mulher, só um objeto da relação”. Assim começou o depoimento de Nayara F. S., 35 anos, artista da cidade de São Paulo que, apesar de casada há mais de dez anos, a certa altura da vida se deu conta das inúmeras amarras que vivia na área sexual.

“Quando me casei, casei no ideal de que e a importante guardar o sexo para o casamento. Qualquer vontade sexual que eu sentia enquanto namorava eu logo reprimia”. O que aconteceu, no entanto, foi que, depois de casada, ela descobriu o sexo de uma maneira que não a agradava. Por isso, a vontade transar com seu marido só diminuía, ao ponto de gerar grande sofrimento a ela. “Primeiro pensei que era momentâneo, e que com o tempo eu iria ter vontade. Mas em onze anos de casamento foram muito raras as vezes em que isso aconteceu. E com algum tempo de casados, até beijos e abraços foram se tornando coisas raras e sem gosto…”

A história de Nayara não é tão rara ou incomum quanto se pode pensar. Muitas mulheres sofrem com a falta de desejo sexual. Dor na relação, incômodo, sentimento de insatisfação, tristeza e, muitas vezes, culpa marcam a vida de muitas mulheres. Segundo o ginecologista e sexólogo, colaborador do Ambulatório de Sexualidade da Divisão de Clínica Ginecológica do Hospital da Clínicas, Theo Lerner, “a falta de desejo ou disfunção sexual é uma coisa extremamente frequente nas mulheres. Pelo menos 40% em algum momento da vida passam por dificuldades na esfera sexual”. Porém, apesar do alto índice de casos, este é um tema difícil, pois ainda é cercado de uma série de tabus e preconceitos.

“Muitas mulheres veem a relação como algo para o outro, para o homem, e não se enxergam como alguém que está participando ativamente.”
— Theo Lerner, ginecologista e sexólogo

Orgasmo feminino

Os papéis sociais aos quais a mulher foi relegada durante a história impediram-na de falar abertamente sobre seus desejos e vontades, e estabeleceram limites sobre o que ela podia querer ou não. Para Lerner, “ao considerar papéis de gênero e dominação, até o século retrasado, ou a metade do século passado, era visto como anormal a mulher que tivesse orgasmo ou que gostasse de sexo. Só a partir da revolução da pílula isso foi ‘permitido’ à mulher. Historicamente, portanto, é uma coisa muito recente”.

Nos dias de hoje, quando o modelo da mulher sexualmente subserviente, que serve ao homem na cama, é assumido, isso a coloca, necessariamente, no papel de “objeto”, destacado por Nayara no começo desta matéria. Essa mulher passa a enxergar o sexo como uma relação na qual ela é necessariamente ignorada. Segundo o doutor Lerner, “muitas mulheres veem a relação como algo para o outro, para o homem, e não se enxergam como alguém que está participando ativamente”. Assumindo essa posição e negando seu protagonismo no sexo, terão grandes dificuldades de encontrar aquilo que as agrada, de fato.

O médico explica: “Se ela não está fazendo por ela, mas para o outro, ela não estará estimulada. Inclusive ela não vai estar empoderada o suficiente para solicitar uma preliminar que seja adequada à necessidade dela. E aí as coisas começam a se complicar.” Segundo Lerner, um ciclo de diminuição do desejo se estabelece: “Ela tem pouco desejo, vai para a relação por obrigação, não está lubrificada, já que muitas mulheres começam a produzir lubrificação depois de começado o estímulo, e não produzindo lubrificação, a relação é dolorosa. Se a relação é dolorosa, fica desagradável, e a próxima ficará ruim de novo. Quando você consegue que a mulher se perceba como participante ativa da relação, ela consegue experimentar, ver o que ela quer e o que irá funcionar para ela. E o que vai funcionar para cada uma é diferente”.

Muitas mulheres vivem um grande dilema: sentem-se responsáveis por satisfazer as expectativas masculinas e, na contramão, abrem mão do seu prazer ou não têm consciência da mutualidade para o sucesso de uma relação. O ginecologista conta: “Tem muitas mulheres que vêm procurar ajuda porque o parceiro tem uma disfunção sexual. E elas assumem a culpa para elas. O parceiro não tem ereção, ou tem uma ejaculação precoce, e fala que a culpa é da mulher, porque sua vagina é larga, por exemplo. E ela vai ao ginecologista para ‘consertar’ uma vagina larga que não existe. Ou seja, muitas compram para si, com muita facilidade, a responsabilidade por esse tipo de coisa”.

Por casos como esse é que se faz urgente falar sobre a sexualidade feminina e conscientizar as mulheres de seu corpo, seus desejos, suas vontades, o que lhes agrada, o que para elas é bom. Continuar silenciando estes temas ou tratando-os de forma inadequada fará com que o sexo continue sendo, para tantas mulheres, motivo de sofrimento.

Ilustração: Laura Viana
Ilustração: Laura Viana
Desempenho

Há, ainda, um paradoxo para a mulher atual: se, por um lado, com o advento dos anticoncepcionais ela deixou de ser “proibida” de ter orgasmo, por outro, ela passou a ser “obrigada” a ter um desempenho sexual cinematográfico. Isso significa uma carga de tensões grande para as mulheres, sem que a questão da sua sexualidade seja discutida adequadamente. Tanto a restrição absoluta quanto a imposição da satisfação total a fim de agradar o outro geram problemas. “Há muitos produtos da mídia que dizem que a sexualidade da mulher tem que ser ‘x’, ‘y’, ‘z’, estrelinhas, fogos de artifícios, subir pelas paredes, seja lá o que for. E isso coloca uma pressão à mulher. De repente, o prazer que ela tem passa a ser insuficiente. Ela pode ter um orgasmo perfeitamente normal e satisfatório, mas que não se enquadra dentro dessa expectativa social”, explica Theo Lerner.

Vê-se que esse paradoxo, de novo, parece legislar sobre o desejo feminino. Longe de libertar a mulher, isso a leva a um outro extremo perigoso, que a mantém no lugar de objetificação.

Quebrando paradigmas

Um caminho para a superação destes problemas e para o empoderamento sexual feminino é a comunicação. É muito importante que a mulher se expresse, fale, se comunique. As disfunções sexuais devem ser identificadas, sem vergonha ou medo. “Primeiro, é superimportante que a mulher procure ajuda sempre que tiver alguma dúvida ou alguma necessidade na área sexual”, pontua Lerner. Se houver uma causa orgânica por trás da falta de libido ou das dificuldades sexuais, por exemplo, ela pode ser tratada. Mas o médico afirma que isso é extremamente raro. Segundo ele, as causas são muito mais psicodinâmicas, envolvendo fatores mais culturais. E aí existe uma série de técnicas, orientações e terapias que podem ser utilizadas para que a pessoa consiga reconstruir e ressignificar a sua própria vida sexual.

Não há mágica ou garantia de sucesso instantâneo. O fim da insatisfação sexual feminina e do medo de conversar sobre ela tem a ver com comunicação. Mas, por mais delicado que isso seja, vale a pena. Vale, porque sexo não significa apenas prazer e contentamento momentâneos. Também tem a ver com respeito e dignificação da pessoa. Uma vida sexual infeliz não deve ser uma carga imposta a ninguém. E é possível livrar-se dela, mas isso passa, necessariamente, pela quebra de paradigmas.

Por Quéfren de Moura