Além de 2016: a questão do saneamento

Problema nas águas olímpicas apenas revelam situação crítica do tratamento de esgoto no Brasil

A menos de um ano das Olimpíadas Rio 2016, uma análise, encomendada pela Associated Press, mostrou níveis perigosamente altos de vírus e bactérias de esgoto humano em locais que receberão algumas competições dos Jogos Olímpicos.

A principal causa dessa poluição é a falta de tratamento adequado do esgoto, especialmente na lagoa Rodrigo de Freitas onde, segundo o Professor Roque Passos Piveli, chefe do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Escola Politécnica da USP, há a “descarga de esgoto bruto não tratado”, ou seja, os esgotos são despejados sem prévio tratamento, o que confirma o fato de suas águas poderem apresentar alto risco de contaminação no caso de ingestão acidental. No entanto, pondera o Professor, o perigo maior é para a população, não tanto para os atletas.

O problema do saneamento básico não se restringe, porém, à cidade sede das próximas Olimpíadas, pois atinge cerca de 40% da população brasileira que não possuem um abastecimento de água “seguro e contínuo” e 60% da mesma população que, ou não possuem coleta de esgoto, ou o esgoto coletado é lançado “sem tratamento no ambiente”, conforme dados apresentados no Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab).

Abastecimento de água e tratamento de esgoto

A Lei do Saneamento (nº11.445/2007) determina que “abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos realizados de formas adequadas à saúde pública e à proteção do meio ambiente” são alguns dos princípios fundamentais do saneamento básico. Assim, todo o conjunto de infraestrutura e atividades necessárias para garantir, por exemplo, o fornecimento de água potável e coleta e tratamento de esgoto é saneamento básico.

No estado de São Paulo, conforme dados de 2013 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), há rede de água para 95,8% da população e 87% dos paulistas têm acesso à coleta de esgoto. Apesar desses dados serem positivos se comparados ao restante do país, os números mostram que somente pouco mais da metade do esgoto coletado é direcionado a uma estação de tratamento, ou seja, os outros 50% de esgoto são despejados em rios e lagos sem passar por qualquer processo de despoluição. Conforme esclarece José Luiz Negrão Mucci, Professor do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP,o que acontece hoje em São Paulo é que o esgoto, tratado ou não tratado, é lançado em corpos d’água, rios que vão servir de abastecimento lá na frente”.

O Professor Roque Piveli confirma as impressões de José Luiz, explicando que o saneamento básico aqui é deficiente porque o setor de tratamento é relegado a um segundo plano, o que comprova os níveis de abastecimento de água bem superiores aos de saneamento de esgoto. Piveli  ainda destaca que são poucas as estações de tratamento e, além disso, as existentes operam com “pouca eficiência”, produzindo maus resultados: “implanta-se o tratamento e faltam recursos para a sua operação e manutenção”.

Essa disparidade entre o percentual de abastecimento de água e de tratamento do esgoto é resultado também de outros fatores, segundo a professora Ana Paula Fracalanza, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP e especialista em Gestão Ambiental. Ana Paula explica que o número de estações de tratamento de esgoto é insuficiente para toda a região metropolitana de São Paulo e que nem todo o esgoto coletado nas casas para um coletor tronco é direcionado para uma das estações de tratamento.

O problema todo é  agravado pela questão envolvendo as áreas informais de habitação, pois parte da população paulistana não tem seu esgoto coletado, especialmente aqueles que residem em áreas periféricas, em loteamentos instalados de forma irregular, muitas vezes em áreas de mananciais.

No Plano Municipal de Saneamento de São Paulo, há dados que mostram que aproximadamente 1.6 milhões de pessoas vivem em áreas irregulares, destinadas à proteção aos mananciais metropolitanos, especialmente nos arredores das represas Guarapiranga e Billings. Nesse contexto, o poder público se encontra em um impasse: se, de um lado, precisa garantir a essa população moradia adequada com toda a infraestrutura necessária para o saneamento básico, de outro, enquanto essas pessoas estiverem ocupando áreas ilegais, não há meio para garantir esse fornecimento. Assim, o assunto deixa de ser apenas ambiental e necessita também de um planejamento urbanístico, o que dificulta ainda mais a solução do problema.

Crise hídrica: poluir para depois limpar

Ana Paula Fracalanza, questionada se a falta de tratamento de esgoto doméstico contribui para a falta de água, observa que a poluição dos rios e represas não se dá apenas pelo esgoto doméstico e cita o caso da represa Billings que tem “um passivo ambiental de poluição industrial por metal pesado”. Para essa água ser utilizada para consumo humano, é preciso passar por um tratamento específico para despoluí-la do metal pesado da indústria.

Sobre a crise de abastecimento de águaa Professora afirma que a crise não é apenas quantitativa mas também qualitativa. Quantitativa pelo baixo nível dos reservatórios e pelo corte do abastecimento em vários locais; qualitativa, pois, segundo a entrevistada, pode haver uma contaminação da água quando volta às torneiras, bem como nos loteamentos irregulares onde a água acaba chegando também de forma irregular, sem controle sobre seu tratamento.

Roque Piveli acredita que, em uma situação emergencial, é mais viável investir na descontaminação na fase de abastecimento. Quando, porém, a questão é analisada a longo prazo, o professor aponta essa lógica também como causa do problema. “A gente tem que começar lá atrás; a contaminação é um problema para ser resolvido na fonte: nós precisamos tratar esgoto, precisamos tratar produtos industriais não lançados in natura, mas reverter a qualidade de água no próprio corpo receptor e não em uma fase de uso, de abastecimento”. Piveli completa que “se houvesse um melhor investimento em tratamento de esgoto, não se gastaria tanto em saúde”.

Assim, é possível concluir que essa é também uma preocupação de Saúde Pública. Especialista na área, José Luiz esclarece que pessoas que vivem em área de esgoto exposto muitas vezes entram em contato direto ou indireto com a água contaminada. “Esse contato primário – que é encostar a pele, encostar qualquer parte do corpo ali – pode causar doenças de pele, dermatite.” Muitas doenças diarréicas, aquelas em que o primeiro sintoma é a diarréia, também podem estar ligadas à ingestão de água poluída.

Doenças respiratórias também podem ter alguma ligação com as águas de lagos e rios contaminados. No caso, por exemplo, do Rio Tietê, do Pinheiros e também desses córregos que atravessam a USP, o Professor Piveli explica que “por terem oxigênio zero em boa parte do ano, acaba tendo redução de sulfato para sulfeto via anaeróbia com a exalação do gás sulfídrico que tem um odor intenso parecido com ovo podre. Existe além do odor e da corrosividade, o problema da toxicidade do gás sulfídrico, principalmente para crianças e idosos”. Piveli atenta que este não é nenhum risco agudo e que varia de acordo com o nível de concentração desse gás e com o tempo de exposição.

Por Giovana Bellini