“Os ratos passam por cima de nós”

Moradora do bairro Divinéia, em São Bernardo do Campo, Vera Lúcia fala sobre seu cotidiano sem acesso à coleta de esgoto e fornecimento de água
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Foto: Giovana Bellini

A caminhada até a casa de Vera Lúcia (38) é um pouco diferente do normal em centros urbanos. Localizada, literalmente, no beco de um beco no bairro de Divinéia, no município de São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo, é preciso se equilibrar em tábuas de madeira compensada e portas antigas, além de suportar um ensurdecedor cheio ruim, para chegar à residência.

“A gente precisou colocar essas madeiras para não ter que andar por essa água aí da frente. Tudo que sai da nossa pia, da privada, do chuveiro, vai direto para lá”, explica Vera Lúcia.

Sob as tábuas, uma lenta corrente de água misturada com lixo, comida e outros dejetos cumpria a função de esgoto. O local, ocupado irregularmente pelos moradores, não conta com nenhuma cobertura da rede de esgoto que serve a cidade. No invisível em que está situado, é difícil até mesmo imaginar que as residências sejam contabilizadas em estatísticas oficiais de saneamento básico.

“Quando chove é um problema. A casa da frente sofre muito, pois a água sobe e vai toda para lá”, relata Vera Lúcia. “Aqui em casa não enche, mas nós nem conseguimos sair daqui quando isso acontece”, completa.

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Foto: Giovana Bellini

Em uma casa construída com duas paredes de alvenaria e divisórias de madeirite coberta com poucas telhas, Vera Lúcia vive ali com seus dois filhos, uma menina de 9 anos e um garoto de 8. O espaço, de aproximadamente 4m², abriga uma pequena lavanderia, um banheiro e um ambiente que é utilizado como sala, quarto e cozinha. Não há espaço para nenhuma cama. Para dormir, os moradores utilizam dois colchonetes que toda noite são acomodados no chão esburacado da casa.

“O maior problema aqui a noite são os ratos. Enquanto nós dormimos, podemos sentir eles passando por cima de nós. Isso acontece todo dia. Nós temos que conviver com isso”, conta Vera.

De acordo com ela, por não ter um armário ou algo parecido em sua casa, os alimentos eram guardados dentro do fogão. Em outra noite, Vera relatou ter ouvido os ratos atacando um saco de arroz. “Eu peguei a parte onde eles [ratos] tinham mexido e aproveitei o resto. Não podia desperdiçar toda a comida”, disse.

A moradora vive ali há cerca de dois anos. Para completar a renda que recebe do Bolsa Família (R$ 140,00) e do programa estadual Renda Mínima (R$ 80,00), ela trabalha com reciclagem. “Eu não quero nem saber, abro todos os lixos mesmo e procuro o que posso vender para conseguir algum dinheiro. Em alguns dias consigo R$ 1, em outros R$ 0,80”, conta.

Em dezembro de 2014, pouco antes do natal, sua filha sofreu com uma grave infecção de uma “bactéria rara”. Depois de ficar internada alguns dias, a garota teve de tomar remédios de custo elevado para se recuperar. De acordo com sua mãe, cada caixa do medicamento com cinco comprimidos custava R$ 180,00.

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Foto: Giovana Bellini

“Fui obrigada a fazer um empréstimo para conseguir comprar os remédios. Até hoje estou com a dívida. Mas o que eu iria fazer¿ deixar minha filha morrer¿”, pergunta.

Para Vera Lúcia, o adoecimento da filha pode ser explicado pela ausência de qualquer rede de coleta ou fornecimento de água. Ela relata que, entre 6 e 13 de agosto, chegou a ficar quatro dias sem acesso à água, que chega por meio de “gatos” em suas torneiras.

A falta de água gera muitos problemas aos moradores. O fornecimento inconstante impede que a catadora consiga cozinhar, lavar a louça, lavar roupas e até mesmo usar o banheiro.

“Outro dia nós estávamos sem água há algum tempo, e o vaso sanitário já estava todo entupido. Não dava mais para usar, estava entupido até a boca. Os meus filhos são pequenos, tiveram que usar o vaso. Aí eu tive de arrumar uma tábua para cobrir o vaso sanitário, porque o cheiro estava insuportável”, relata.

Como não podia mais usar o vaso, Vera explicou que ela e seus filhos tiveram de defecar em sacolinhas plásticas, que depois eram dispensadas em uma espécie de caçamba, localizada a cerca de 50 metros de sua casa. “Imagine só, que vergonha!”, afirma.

“Se o canibal [vizinho] estivesse aqui na casa dele, vocês podiam olhar lá. Ele é quem sofre mais com isso, o esgoto volta todo ali para dentro da casa dele, pelas paredes, não sei nem como explicar. A situação dele é muito ruim”, conta Vera Lúcia. O morador não foi encontrado pela reportagem de Jornal do Campus.

Por Igor Truz