Quando o motorista se torna dispensável

USP de São Carlos tem tecnologia para fabricar carros autônomos, que são promessa para o futuro

A cada 12 minutos, uma pessoa morre em acidentes de trânsito no Brasil. O levantamento, do Observatório Nacional de Segurança Viária, com base nos dados do DPVAT, o seguro obrigatório dos veículos, também mostra que o trânsito foi a segunda maior causa de mortes no país em 2012, à frente dos homicídios ou do câncer. A irresponsibilidade e a inexperiência dos condutores causam 95% dos acidentes viários do país. Na expectativa de garantir maior segurança no trânsito, pesquisadores da USP São Carlos desenvolvem o Carro Robótico Inteligente para Navegação Autônoma (Carina), que pode trafegar sem motorista. Ligado ao Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação, o Laboratório de Robótica Móvel (LRM) trabalha com a versão atual do Carina desde 2011. Um Fiat Palio Adventure foi totalmente adaptado para o projeto, com recursos e apoio da Fapesp e do CNPq, explica o coordenador Denis Wolf.

Funcionamento

O carro funciona, hoje, por meio de três sistemas integrados. No sistema de percepção, operam um sensor laser no teto do carro, que identifica o que está num raio de 50 metros em torno do veículo; um GPS, que fornece a localização do carro e o percurso que deve ser feito e uma câmera, também no teto, que mede a profundidade em 3D e detecta a forma de pessoas e obstáculos, freando automaticamente, se necessário. Há um computador no porta-malas, que faz parte do sistema de processamento e recebe informações do sensor. No sistema de atuação, está a parte mecânica do veículo, com volante, freio, acelerador, câmbio automatizado e tela de comando adaptados. Há também um botão que desliga o modo autônomo e habilita a direção manual, por segurança.

O carro mantém distância ideal do veículo à frente. A velocidade máxima está em torno de 60 km/h. Apesar do uso de tecnologias e componentes totalmente estrangeiros, a programação dos softwares do Carina foi desenvolvida na USP – “a parte mais difícil do projeto”, de acordo com Denis. É o funcionamento dos softwares que distingue os projetos ao redor do mundo. O Carina, por exemplo, utiliza mapas contínuos. Eles informam ao carro para qual faixa de trânsito ir durante o percurso. “Essa solução exige que se mapeie muito bem as faixas virtuais nas quais o veículo deve andar, já que não correspondem à sinalização pintada no chão”, explica Denis. A solução com faixas virtuais é importante quando se pensa no contexto brasileiro, em que há vias mal sinalizadas e estradas de terra. O projeto não foi desenvolvido, a princípio, com o intuito de comercializá-lo. O investimento foi de aproximadamente R$ 320 mil. O custo não foi uma preocupação, pois “o Carina é uma plataforma de pesquisa, e quanto mais sofisticados os equipamentos e maior o número deles, mais margem temos para estudo”, explica Denis.

Interesses

Hoje, universidades e empresas, sobretudo estrangeiras, desenvolvem pesquisas sobre veículos autônomos. Em até uma década, é provável que os carros cheguem ao mercado. O Google, por exemplo, investe pesado no setor. Seus carros sem motorista circulam há alguns anos na cidade de Mountain View, sede da empresa na Califórnia (EUA). O gigante da alta tecnologia aposta em serviços de táxis sem motoristas, que poderiam ser compartilhados por diferentes usuários. Eles estimam que a utilização seria superior a 75%, com a diminuição do número de carros nas ruas.

Depois do primeiro teste público do Carina em 2013, novos projetos surgiram, como o caminhão autônomo, com patrocínio da montadora Scania, e pulverizadores autônomos para a agricultura.

No grupo, há alunos de graduação e de pós-graduação. Por trabalhar com um tema novo e de interesse internacional, a equipe é assediada por empresas da área, como a Apple. Segundo Denis. “O conhecimento que os alunos possuem é praticamente inexistente”, diz ele.

Grandes impactos

As transformações prometidas pelos veículos autônomos são diversas. A segurança é uma questão fundamental, já que falhas humanas relacionadas ao consumo de álcool, excesso de velocidade e distração não afetariam as máquinas. Apesar de alguns acidentes, não há registros de colisões graves envolvendo carros do Google, mesmo tendo feito poucos testes.

A possibilidade de compartilhar veículos possivelmente diminuiria o número de carros, que hoje ficam parados, em média, em 96% do tempo. Em vez de proprietários particulares, as operadoras de frotas, que prestariam serviços de táxi, seriam uma tendência. Os lugares destinados a estacionamentos seriam reduzidos. Durante as viagens, os passageiros aproveitariam seu tempo livre com outras atividades. Idosos e deficientes fisicos contariam com maior autonomia. A interligação de informações dos carros otimizaria a organização do tráfego, e os veículos poderiam ser direcionados para evitar engarramentos. A indústria automobilística e setores relacionados certamente seriam abalados.

Denis aponta que os rumos da área serão ditados pelo mercado, que ainda não conta com feedback do público. “A pesquisa e a tecnologia existem, mas a pergunta é: quem vai comprar esse carro?”, afirma. Novos dilemas éticos despontariam, como a responsabilidade dos acidentes, se caberia ao fabricante do veículo ou à operadora da frota, por exemplo.

A tomada de decisão diante da iminência de acidentes é outra dúvida: os passageiros dos veículos envolvidos deveriam ser tratados de forma igual numa situação como essa? O uso dos dados dos carros também deve ser discutido, para se manter a privacidade dos condutores. Uma legislação específica para carros autônomos, portanto, é necessária. Especialistas apontam que os legisladores já deveriam articular tais leis enquanto a tecnologia ainda é desenvolvida.

Situação no Brasil

De acordo com Denis, o papel do LRM, enquanto grupo de pesquisa, é mostrar que existe a possibilidade de desenvolver a tecnologia no país, com pessoal capacitado. Para ele, “o próximo passo é alguém investir e tornar isso um produto nacional”.

Em julho deste ano, a presidenta Dilma Rousseff, em visita ao Estados Unidos, circulou num carro autônomo do Google, algo amplamente divulgado na mídia. Ela ficou fascinada e declarou estar surpreendida com o nível de desenvolvimento da empresa. “Será que alguém tem ideia de que isso já é desenvolvido no Brasil? Dilma ou qualquer político poderiam fazer o teste aqui”, declarou Denis Wolf, lembrando os outros grupos no país que também desenvolvem carros autônomos. As demonstrações públicas se mostram, assim, importantes para chamar atenção dos governos e atrair investimentos no grupo. “Temos que mostrar que existe demanda”, diz o coordenador do projeto.

O grupo planeja fazer testes com um serviço de táxi autônomo. “A intenção não é substituir taxistas, mas possibilitar o acesso das pessoas ao Carina e receber o feedback delas”, explica Denis. Um aplicativo para chamar o veículo também será desenvolvido no futuro.

A melhoria na formação dos condutores e a fiscalização mais rígida do trânsito, sem aplicar somente multas, são medidas já que podem ser tomadas no presente. Os carros autônomos, promessa para o futuro, também despertam a reflexão sobre o papel que o Brasil vai desempenhar nesse cenário. “Pode ser que a gente se torne cliente de mais uma tecnologia, enviando milhões em royalties para países como Alemanha e Estados Unidos, além de exportar cérebros para eles, algo que já vem acontecendo”, afirma Denis.

Reprodução: LRM-USP
A imagem mostra como o sensor do carro autônomo identifica o espaço ao seu redor. Reprodução: LRM-USP

Por Guilherme Fernandes