Apenas mulheres. Apenas?

Em ato exclusivamente feminino, alunas e funcionárias se unem por mais segurança na USP
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Foto: Barbara Monfrinato

No último dia 24 de agosto, cerca de 300 mulheres, entre estudantes e servidoras, saíram às ruas da Cidade Universitária, em nome de uma pauta central: mais segurança para as mulheres na Universidade. Partindo às 17h40 do Prédio da Reitoria, elas passaram pelos edifícios da FEA, FAU, FFLCH e CRUSP, até chegarem à Portaria 1, por volta das 19h, onde bloquearam o fluxo de carros nos dois sentidos. O ato fora decidido uma semana antes, durante a I Plenária Geral de Mulheres da USP.

A Plenária foi convocada por membros do Coletivo Feminista da ECA após o mais recente caso de estupro noticiado na Universidade, em junho deste ano, na Praça do Relógio. Durante a reunião, as presentes – fossem ou não integrantes de coletivos organizados – votaram, entre outras medidas, que a manifestação fosse composta somente por mulheres. Apesar do resultado acirrado (26 votos a favor e 25 contra), o argumento vencedor foi de que um ato estritamente feminino seria mais representativo e garantiria que as mulheres fossem as protagonistas de um movimento feito por elas e para elas.

A atual conjuntura gera nas mulheres da comunidade universitária uma sensação de insegurança: as ruas desertas e escuras da Cidade Universitária, as recorrentes denúncias de estupros nos campi, a baixa frequência do transporte público – hoje a frota dos circulares conta com apenas nove veículos em cada uma das duas linhas –  e, mais recentemente, a publicação de um “guia” para estuprar alunas da FFLCH em um blog denominado “Tio Astolfo”. O site, que já foi denunciado à polícia e à Superintendência de Segurança da USP pelo diretor da FFLCH, Sergio Adorno, ofendia as alunas e dava “dicas” de como violentá-las.

A situação na universidade é um reflexo dos riscos que as mulheres enfrentam em todos os lugares, diariamente. “Eu acho que nós sofremos uma espécie de terrorismo psicológico, porque em qualquer lugar a gente sempre está com medo, sempre fica vendo se tem alguém seguindo a gente”, diz Débora Melo, estudante de História presente no ato. “Eu nunca sofri violência, mas tenho várias amigas que já sofreram. Isso faz com que a gente tenha insegurança total”, completa. Já Alana Cris, aluna do Instituto de Oceanografia, conta que foi vítima de uma tentativa de assédio, quando estava sozinha num ponto de ônibus, durante o dia. “Ele ficava cochichando no meu ouvido, falando que eu tinha que ir atrás do ponto ver uma coisa ‘que eu ia gostar’. A sorte foi que apareceu um ônibus e eu entrei, nem sabia qual ônibus era”, lembra.

Com o ato, alunas e funcionárias buscavam cobrar publicamente da administração da Universidade medidas como mais iluminação e mais circulares noturnos nos campi, além da punição dos estupradores e a criação de um centro de referência à mulher, com assistência médica, psicológica e jurídica às vítimas de abusos.

Em relação ao policiamento, o grupo exigia um aumento da Guarda Universitária e, em especial, de seu efetivo feminino, extinto desde o ano passado. Além disso, problematizavam a presença da Polícia Militar no campus, apontando, entre outros problemas, que ela não tem treinamento adequado para lidar com situações de violência contra a mulher.

Nesse sentido, propõem o fim do convênio entre polícia e universidade. “A polícia não está aqui pra proteger as mulheres”, diz Natália Caseu, estudante de Audiovisual. Ela acredita que a polícia reprime a auto-organização e os espaços estudantis. Débora Melo acrescenta: “Eu sou de periferia e vejo a PM bater em mãe de família, assassinar jovem negro na rua, com testemunha e tudo, então eu acho que se a PM vier pra cá só vai prejudicar mais”.

Foto: Bárbara Monfrinato
Foto: Barbara Monfrinato

A universidade Como solução para os delitos praticados no campus, a USP está estudando implantar o que chama de programa “USP Segura”, o qual tem como base o modelo de policiamento comunitário japonês (como publicado no caderno Universidade da última edição do Jornal do Campus). O projeto prevê a participação de policiais com perfil próximo ao dos estudantes, com idade de até 26 anos e formação universitária. A meta é aproximar os policiais da comunidade e trabalhar de forma integrada com a Guarda Universitária.

Pelo modelo, os policiais teriam como foco o combate aos crimes praticados contra alunos, professores e funcionários, deixando problemas disciplinares e a vigilância patrimonial de rotina a cargo do corpo de seguranças da USP. À reportagem, a assessoria de imprensa da USP alegou que o projeto de policiamento ainda vai ser amplamente discutido com a comunidade universitária, mas não esclareceu como ele lidaria com casos de violência contra as mulheres, especificamente.

Para além disso, em tentativa de atender as demandas da comunidade feminina, a USP tem promovido projetos institucionais voltados ao debate de gênero. É o caso do programa HeForShe (ElesPorElas), desenvolvido pela ONU Mulheres em favor da igualdade de gênero e empoderamento das mulheres. Com a proposta de convidar especialmente os homens a advogar pela causa, num movimento solidário, o ElesPorElas foi abraçado pela USP como parte da iniciativa “Impacto 10x10x10”, a qual reúne 30 líderes mundiais em três setores – público, privado e academia.

Existe também o USP Mulheres, coordenado pela professora Lilia Schraiber, da Faculdade de Medicina. Esse programa tem como objetivo estabelecer um relacionamento entre a Administração da Universidade e sua comunidade, propondo projetos e iniciativas em prol da igualdade de gêneros, além de promover o desenvolvimento de uma linha de pesquisa que produza estudos voltados a essa temática. Outros núcleos de pesquisa da Universidade, como o Núcleo de Estudos de Violência e o Centro de Estudos da Metrópole ajudarão a desenvolver tais pesquisas. Tanto o ElesPorElas quanto o USP Mulheres ainda não foram implementados na prática.

Dentre as propostas colocadas pela USP, nenhuma, segundo a Frente Feminista, corresponde às reivindicações práticas feitas desde o final do ano passado, quando aconteceu o 2º Encontro de Mulheres Estudantes. Na ocasião, centenas de membros da comunidade USP planejaram juntas um projeto alternativo de segurança, que contemplava todas as medidas que viriam a ser reivindicadas novamente no ato do dia 24. Esse plano foi incluído em uma carta enviada ao reitor Marco Antônio Zago no início deste ano, mas as mulheres não ouviram resposta por parte da reitoria. “Não temos a menor voz nesse processo. E esse ato vem mostrar que não é isso que a gente quer”, diz Júlia Forbes, membro da Frente Feminista da USP e estudante da História.

Questionada pela reportagem, a assessoria da USP não esclareceu os motivos pelos quais as reivindicações não foram atendidas, mas afirmou que o projeto de iluminação do campus já está em sua fase final de implantação. Além disso, está sendo elaborado um edital para licitação do sistema de monitoramento do campus, em que serão adquiridas mais de 600 câmeras a serem instaladas em suas áreas comuns.

Foto: Bárbara Monfrinato
Foto: Barbara Monfrinato

Investigações Muitos casos de estupro vieram à tona no início de 2015 com a CPI da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Criada em 2014 para apurar violações dos direitos humanos nas faculdades paulistas, a CPI terminou em março deste ano, após ouvir mais de 100 pessoas.

As ocorrências na Faculdade de Medicina, onde há suspeita de que mais de 112 estupros tenham acontecido nos últimos dez anos, contribuíram para que muitas outras se tornassem conhecidas. Em janeiro de 2015, ainda durante a CPI, a mãe de uma aluna da Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz Queiroz) veio à frente com a caso de sua filha, estuprada por oito homens em 2002. Também em 2015, o Diretório Central dos Estudantes (DCE) denunciou cinco incidências de estupro cometidos na EACH por um único estudante. O caso passou a ser acompanhado pelo professor José Renato de Campos Araújo, coordenador da Comissão de Defesa da Diversidade, Direitos Humanos e Democracia da EACH. Outra ocorrência denunciada pelo DCE, em março, foi o estupro de uma aluna da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, ocorrido em 2013.

Essa conduta da universidade em relação aos estupradores é criticada pelo movimento feminista. Para a estudante Ana Cunha, do Coletivo Geni da Medicina, a medida da suspensão é insuficiente. “Eles [os alunos estupradores] deveriam ter sido expulsos”, opina. “Quando a faculdade não pune, o que a gente vê é ela legitimando essas atitudes, falando pros caras ‘tudo bem, pode estuprar, porque não vai acontecer nada com você’”.

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Foto: Barbara Monfrinato

O movimento Em 2011, após o primeiro Encontro de Mulheres Estudantes, a USP ganhou sua Frente Feminista, que nasceu com o objetivo principal de coordenar o movimento feminista dentro da Universidade numa época em que os coletivos feministas não eram tão numerosos. “A Frente Feminista cumpria esse papel de fazer a articulação das mulheres na universidade, para além dos cursos, e começar a fazer eventos, atividades, participar das calouradas – todo ano nós fazemos o manual das calouras, semanas temáticas de debates”, conta Júlia Forbes. “Foi crescendo a mobilização nos cursos e a dinamização da Frente”.

Segundo ela, até 2012, eram poucos os cursos que contavam com coletivos feministas próprios. Hoje, a pauta de opressões tem se diversificado e estado presente em debates, associada ao crescimento do número de coletivos existentes e à organização de ações conjuntas, como a Plenária e o ato.

Em faculdades tradicionalmente masculinas como a Escola Politécnica, a organização de coletivos feministas se mostra ainda mais necessária, ao mesmo tempo em que enfrenta ainda mais desafios. Em 2012, surgiu na Poli o Coletivo PoliGen, o qual, apesar de hoje contar com reuniões cheias e encabeçar ações como a coleta de absorventes para mulheres presas, encaram dificuldades para ganhar espaço na faculdade.

Mesmo na sala de aula o machismo se mantém presente, como conta a aluna Victória Robles, também engajada no coletivo. “Piada machista escutamos diariamente. É sempre assim: ‘Nossa, meninas, vocês sabem o que é concreto?’ e coisas do tipo, como se as meninas não soubessem pelo fato de serem meninas”. Outra estudante, Thatiane Gomes conclui: “Não é fácil, articular um movimento feminista nunca é. Existe toda uma cultura que a gente tem que bater de frente”.

Distantes da organização política que se constrói pela proximidade, na Cidade Universitária, a situação se agrava em institutos como a Faculdade de Medicina e a Esalq. Nesta, o Coletivo Raiz Fulô existe, entre idas e vindas, desde 2012. O grupo ainda é pequeno e precisa lidar com um ambiente pouco acolhedor às mulheres: em junho deste ano, foi denunciado um cartaz que expunha supostas intimidades sexuais de estudantes no campus de Piracicaba. A estudante Giuliana Milani atribui as poucas integrantes à dificuldade de se organizar politicamente na faculdade. “A Esalq tem muita gente conservadora e que pouco se mobilizam. No que diz respeito a questões de gênero, até as meninas que sofrem com machismo todo dia ficam quietas, não procuram o coletivo”.

Já na Medicina, o Coletivo Geni se organizou em 2013, conta a estudante Ana Cunha. “O nosso coletivo tem dificuldade de avançar porque a faculdade ainda está muito crua em relação a feminismo. As pessoas ainda acham que feminismo é odiar homens, ainda acham que é o contrário de machismo”, afirma. Segundo ela, essas ideias se opõem ao real significado do feminismo: equidade entre gêneros. “É um ambiente bem complicado, em que é difícil mudar as coisas porque as justificativas para o machismo são todas baseadas na tradição”.

Foto: Bárbara Monfrinato
Foto: Barbara Monfrinato

Por Isabela Augusto e Paula Mesquita