Menores infratoras à margem do ECA

Apesar da pouca visibilidade, redução da maioridade penal também afeta realidade feminina

A Proposta de Emenda Constitucional nº 171 foi apresentada em 1993 com o intuito de alterar o artigo 228 da Constituição Federal Brasileira e trazer responsabilidade penal para maiores de 16 anos em casos de crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte. Essa proposta já foi aprovada pela Câmara dos Deputados em dois turnos e agora cabe ao Senado por ou não a pauta em votação.

Apesar de o ordenamento jurídico brasileiro considerar o menor de 18 anos inimputável, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) já prevê sanções para adolescentes com mais de 12 anos de idade.

Fernanda Balera, defensora pública que atua na execução de medidas socioeducativas em São Paulo, explica que a questão não é se o adolescente sabe ou não o que faz, mas tem a ver com o desenvolvimento da personalidade e a chegada à maturidade. Ela considera que a redução da maioridade penal seria um retrocesso, pois os que defendem essa mudança querem passar para a sociedade a ideia de que o problema da criminalidade é que existe uma impunidade em relação aos adolescentes.

Isso, segundo Fernanda, não é verdadeiro. Primeiro porque os jovens são responsáveis por uma parcela pequena dos crimes cometidos e também porque, dos delitos por eles praticados, são raros os crimes mais violentos: “eu acompanho mais ou menos 1500 processos e tenho pouquíssimos que se referem a crimes de latrocínio ou homicídio”. Ela completa seu raciocínio afirmando que a redução da maioridade penal é “mais uma forma de criminalizar os jovens pobres, já que são eles que estão nesse sistema, são eles que vão continuar no sistema prisional”.

Roberto da Silva, livre docente em Pedagogia Social da Faculdade de Educação da USP, explica que o ordenamento jurídico brasileiro resguarda a infância e a adolescência sob proteção do Estado e da sociedade. Essa garantia protecional emana de três modos: entender os protegidos pelo estatuto como sujeitos de direitos, independente de sua origem social; observar que eles estão em fase peculiar de seu desenvolvimento e, portanto, nenhuma punição pode ser terminativa no caso do adolescente; e o princípio da prioridade absoluta, segundo o qual é obrigação do Estado fazer todos os esforços necessários junto com a sociedade e a família para a proteção da criança e do adolescente.

“Colocar um grupo de adolescentes, supostamente autores de crimes à margem dessa proteção, significa criar um pequeno universo de exclusão. Um Estado nacional não pode fazer distinção dentro de um universo de mais ou menos 22 de milhões de pessoas na fase de 0 a 18 anos para punir exemplarmente um grupo que não alcançaria mais do que 500 adolescentes”, completa.

A estrutura da Fundação CASA

Em um comparativo da privação de liberdade nos presídios e na Fundação Casa, Fernanda afirmou que, conforme estabelece o ECA, nas unidades da Fundação, a “medida deve ser socioeducativa” e, de fato, as atividades nelas desenvolvidas  confirmam essa direção: “todos os adolescentes da Fundação Casa estudam,  – isso de fato acontece – todos vão à escola, fazem cursos profissionalizantes”. Destaca ainda que eles têm um acompanhamento multidisciplinar, psicológico e social – “passam uma vez por semana com uma psicóloga e com uma Assistente Social” – e esse acompanhamento não é ruim, como julgam algumas pessoas.

O problema maior da Fundação Casa não é o de estrutura física, que é “relativamente boa”, mas o alto grau de violência no cumprimento da medida, desde a violência psicológica, com a imposição de regras de “disciplina” – “ele (o adolescente) tem que ficar o tempo todo com a mão para trás, com a cabeça baixa, o cabelo raspado, ele tem regras absurdas” –, como a violência física: “não é incomum que nas nossas visitas a gente acompanhe relatos de torturas, de adolescentes que foram espancados por funcionários, às vezes até com a participação de diretórios de certas Unidades”, relata Fernanda. Reconhece, porém, que, apesar  de ter um  problema estrutural de violência “seriísssimo”, a Fundação Casa tem esse lado social que merece ser melhor explorado, “com uma perspectiva, para o adolescente, muito melhor que uma prisão, porque ela tem um atendimento que a gente não vê em nenhum presídio”.

Questão de gênero: adolescentes infratoras

Dentro desse contexto de cumprimento de medidas socioeducativas, merecem uma atenção especial e um olhar particular os poucos estabelecimentos de internação de adolescentes do sexo feminino, as quais correspondem a cerca de 5% do total de internos.

Esse número incomparavelmente menor, aliado a um “olhar androcêntrico da sociedade em relação ao feminino”  –  conforme se lê em estudo encomendado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) à Universidade Católica de Pernambuco e publicado em 2015 com o título Justiça pesquisa: dos espaços aos direitos  – tem dado pouca visibilidade à vida das adolescentes internadas, tornando “a prática da vivência institucional mais dramática do que em essência já é”, como se lê na introdução desse documento.

Assim, o desconhecimento da realidade dessas internas em geral leva a não fiscalização das medidas e a eventuais violações de seus direitos: “Ser mulher no sistema socioeducativo ou prisional é ser invisível. Seus desejos e necessidades são vistos a partir daqueles dos homens. Sobre as mulheres recai uma reprovação que vai além do ato infracional e perpassa a ‘decepção’ pelo descumprimento dos papeis de mãe, irmã, filha, tão esperados, como dócil e colaborativo”.

Como no estado de São Paulo há apenas três unidades de internação femininas (duas na capital e uma no interior), acabam cumprindo a pena muito distantes de suas famílias. “É muito comum que as adolescentes cumpram a medida inteira sem receber nenhuma visita”, relata Fernanda. Além disso, tem uma questão de reprodução de estereótipo de gênero: as meninas têm uma carga mais pesada no sentido disciplinar, pois “uma mulher que transgride uma regra, acaba sendo punida de uma forma mais dura em relação a essa disciplina do que os adolescentes”.

No entanto, não se pode deixar de apontar que, em alguns casos, o poder público tem se preocupado em propiciar um cumprimento mais humanizado da medida socioeducativa de internação para as adolescentes. Conforme relata Fernanda, há na cidade de São Paulo uma unidade da Fundação Casa, no bairro da Mooca, que oferece um atendimento voltado para adolescentes grávidas. É uma unidade “de proteção à maternidade infantil: as detentas, a partir do 7º mês de gestação, vão para esse lugar e todas elas ficam lá até ter o filho. Ficam o tempo inteiro com a criança e não são separadas. Se a menina for ficar um ano, ela fica o ano  inteiro com o bebê, diferente do que acontece no sistema prisional”, conclui Fernanda.  

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Infográfico: Leandro Bernardo

 

Por Giovana Bellini