O peso do cansaço: trabalhadores denunciam precariedade nos bandejões

Sobrecarga de trabalho sob funcionários ameaça operações em restaurantes da Universidade
Arte: Rafael Marquetto
Arte: Rafael Marquetto

Arroz, feijão e peixe. Para acompanhar, quiabo e salada de almeirão. Aos vegetarianos, torta de PVT (proteína vegetal). Esse foi o cardápio do jantar na noite de quinta-feira, dia 17, no Bandejão Central. No dia seguinte, não houve refeição. Funcionários dos restaurantes universitários da USP, os famosos Bandejões, paralisaram suas atividades sob a alegação de sofrerem exploração no trabalho e assédio moral. O Jornal do Campus (JC) investigou as condições de trabalho dos Cozinheiros e Auxiliares de Cozinha empregados pela Superintendência de Assistência Social da USP (SAS) e descobriu um cenário alarmante: com oferta de empregados abaixo da necessária, equipamentos defasados e sobrecarga de serviço, 69% dos funcionários já avaliados estão doentes.

O expediente nos restaurantes começa cedo. Às 6 horas da manhã os primeiros servidores cruzam o acesso à cozinha, colocam seus uniformes e iniciam uma jornada que só termina depois das 15 horas, quando as mais de 7 mil refeições do almoço foram servidas. Nesse horário, o preparo para o jantar começa a ser feito por outra leva de trabalhadores. Por dia, milhares de estudantes passam pelos Bandejões, que estão presentes nos campi da Cidade Universitária, Faculdade de Direito, Faculdade de Saúde Pública e Escola de Enfermagem, em São Paulo, de forma não terceirizada.

A quantidade de refeições servidas é suficiente para que a produção seja feita em escala industrial. Na cozinha, panelas gigantes recebem os alimentos que, mais tarde, abastecerão as bandejas e pratos dos estudantes. O vapor do cozimento eleva a temperatura do ambiente e há pouca ou nenhuma ventilação. Caminhões descarregam toneladas de carne nas unidades abastecedoras – aquelas que produzem o que depois é distribuído para as demais. Frutas, pães, grãos e verduras chegam aos restaurantes em grandes quantias para serem manuseadas pelos funcionários. Mas esses últimos, que são os principais elementos para o bom funcionamento dos restaurantes, estão fatigados.

Doenças de trabalho

Atualmente, 167 funcionários da SAS atuam nas funções de Auxiliar de Cozinha e Cozinheiro, de acordo com o Portal de Transparência da USP. A redação do JC teve acesso a dois relatórios técnicos oficiais, elaborados por médico do trabalho após recente avaliação periódica de 142 destes funcionários. Um deles lista 43 trabalhadores sem restrições, e o outro, 99 com limitações adquiridas no exercício da função. Isso significa que 69% dos avaliados possuem doenças derivadas do trabalho.

As restrições mais comuns são as de carregamento de peso; movimentos repetitivos; atividades com braços elevados e sem apoio e permanecer por longos períodos em pé. Em alguns casos, restringe-se inclusive a manipulação de alimentos.

Um funcionário que trabalha há 10 anos no Bandejão e preferiu não se identificar, afirmou que “antigamente não era tão fácil ser diagnosticado com L.E.R., mas hoje, com 1 ano, 1 ano e meio de função, você já está com restrições ligadas ao trabalho”. Uma análise ergonômica realizada em 2014 por pesquisadores da Escola Politécnica da USP (Poli) indica que a exigência de força considerável ao abastecer e retirar alimentos dos caldeirões no processo de cozimento; os movimentos repetitivos; a falta de apoio dos braços ao colocar alimento no forno e a sobrecarga nos membros superiores durante o processo de higienização dos alimentos, entre outras atividades cotidianas, contribuem para o quadro de adoecimento.

Marcello Pablito, que trabalha no Bandejão há 8 anos e é presidente da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA), comenta que “não há plano de ergonomia, então o trabalhador se adapta como pode nas bancadas, pias e balcões e vai acumulando problemas de saúde em virtude dos esforços repetitivos e sobrecarga de peso”. Marcello narra também a recorrência de casos em que caminhões com 6 toneladas de carne chegam ao almoxarifado para serem descarregados por apenas duas pessoas.

Segundo Vinícius* (nome fictício), engenheiro do trabalho do Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT) da USP, a descarga de alimentos dos caminhões é uma das tarefas que poderiam ser automatizadas. Ele explica que, apesar de existir muito investimento na área de pesquisa, pouco do que se desenvolve em estudos é colocado em prática no que se refere à SAS.

Outro fator responsável pelo surgimento de acidentes de trabalho, que podem gerar restrições, segundo relatório da CIPA e pesquisa da Poli, é a insalubridade do ambiente. Com exposição do corpo a altas temperaturas provenientes do cozimento dos alimentos e da saída de água dos caldeirões, trabalhadores se sujeitam a riscos de queimadura, além de desconforto térmico, devido a falta de ventilação. Também há relatos de existência de pisos escorregadios, ralos defeituosos e alocação inadequada de panelas e utensílios em locais altos, que podem cair e ferir pessoas e também contribuem para a incidência de L.E.R.

Aos domingos, apenas 9 pessoas preparam as refeições para mais de 1400 pessoas (Foto: Juliana Meres)
Aos domingos, apenas 9 pessoas preparam as refeições para mais de 1400 pessoas (Foto: Juliana Meres)
Restrições não respeitadas

Funcionários também denunciam o fato de que em muitos casos as restrições trabalhistas não são respeitadas pela direção do restaurante. Um deles afirma que: “O médico dá um papel dizendo que você não está apto a isso, isso e isso, e, quando chega aqui, esse papel não vale nada, é a mesma coisa que trazer um papel em branco”. Solange Lopes, diretora do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp) e funcionária do Bandejão há 26 anos, também relata a ocorrência de casos em que “a pessoa que está doente ouve o seguinte da nutricionista: ‘você vai ter que fazer tal serviço, pois não tem ninguém para fazer’”.

Outra funcionária que também não quis se identificar e tem experiência de 26 anos em sua função sugere que haja rotatividade nos cargos, para minimizar a ocorrência de problemas de saúde: “Se tivesse uma chefia que fizesse rodízio de serviço, hoje o fulano está na sala de louça, amanhã ele vai para outro lugar, ele não ficaria com tendinite”, afirmou. O rodízio é recomendado pelos médicos trabalhistas e propõe que os trabalhadores com restrições passem no máximo 20 minutos em cada função. Uma segunda funcionária, com 13 anos no restaurante, comenta que as nutricionistas aplicam o rodízio àqueles com restrição, ainda que o trabalho seja exaustivo.

Marcello Pablito confirma a existência de casos de trabalhadores com restrições que são forçados a fazer atividades que não poderiam desempenhar: “Há funcionários com restrição médica, que não poderiam fazer esforço repetitivo e fazem, porque têm que fazer, senão o trabalho não sai. As chefias obrigam”. Segundo Gustavo Seferian, advogado trabalhista e sindical, caso o empregador não realoque um funcionário com restrições médicas, ele pode ser responsabilizado junto à Justiça do Trabalho e ter que indenizar o trabalhador por danos de ordem moral, material e estética sofridos pela exposição a riscos.

Vinícius*, engenheiro do SESMT, esclarece que a conjuntura é fruto de um descaso da universidade com a melhoria da área operacional. Ele explica que a universidade tende a tratar os problemas de saúde dos empregados como algo administrativo, passando para o SESMT casos graves sem dar respaldo financeiro e institucional para que sejam solucionados de fato.

Assédio moral

Uma queixa bem comum a muitos funcionários é a de que a direção do Bandejão e as nutricionistas que atuam nele assediam moralmente os Cozinheiros e Auxiliares de Cozinha do restaurante. Um deles comenta: “É uma forma de assédio exigir que você faça o que o médico está dizendo que você não pode fazer”. Outra completa: “O pior de tudo é o assédio da chefia, que só gosta e trata bem quem ‘puxa o saco’ dela.” Para Solange Lopes, “as nutricionistas fazem o assédio moral constantemente, pois querem manter o trabalho delas, querem manter o restaurante funcionando a qualquer custo”.

O JC contatou a nutricionista e supervisora técnica do Bandejão Central, Selma Miranda Corso, mas a funcionária não se posicionou. Selma disse precisar de uma autorização da SAS para nos conceder entrevistas a respeito de assuntos relacionados ao restaurante.

Segundo Marcello Pablito, os funcionários que reclamam das condições de trabalho sofrem represálias: “Eu já fui transferido de restaurante 3 ou 4 vezes, por conta das vezes em que eu fui denunciar as condições de trabalho. Funcionário aqui abriu a boca, é transferido, ou sofre algum outro tipo de represália.” Segundo ele, a pressão é constante, e chegou a ocasionar problemas psicológicos em trabalhadores. “Funcionários, principalmente mulheres, que são a maioria, se trancam no banheiro para poder chorar, porque não aguentam mais o assédio. A maioria aqui é obrigada a tomar remédios, muitos têm problema de síndrome do pânico, depressão, ansiedade, porque não suportam a pressão que existe aqui dentro”, diz.

Bandejão central da USP durante o almoço (Foto: Juliana Meres)
Bandejão central da USP durante o almoço (Foto: Juliana Meres)
Origens do problema

De acordo com Solange Lopes, do Sintusp, as condições de trabalho para os funcionários dos restaurantes são inadequadas há muitos anos, mas têm se agravado de maneira notável desde 2007, quando houve uma grande greve de alunos, professores e funcionários.

Na época, estudantes solicitaram que o Bandejão Central abrisse aos domingos e servisse café da manhã. O que tornou-se uma conquista importante para os estudantes, acabou prejudicando os trabalhadores do restaurante, pois a reitoria não fez as devidas contratações de funcionários para dar conta de oferecer café da manhã e refeições aos domingos. “Nós apoiamos a abertura do restaurante aos domingos, mas a proposta era a de que a reitoria contratasse mais funcionários, porque os que estavam lá na época já estavam com L.E.R.”, explica Solange.

Para suprir o aumento da demanda de refeições, a reitoria comprometeu-se a contratar 50 funcionários, o que, ainda de acordo com a diretora do Sintusp, não aconteceu: “Abriram o Bandejão aos domingos, contrataram umas 25 pessoas, metade do que era necessário.” Desses funcionários novos, poucos permaneceram após o estágio probatório (período de experiência): “De 50 que deveriam ter sido contratados, devem ter ficado uns 20. E com café da manhã, restaurante aberto aos domingos e falta de funcionários, isso está trazendo uma sobrecarga de trabalho”, pontua a representante do Sintusp, indicando a dimensão do problema.

Mudanças

Após a aplicação do PIDV, que teve grande adesão entre funcionários no início de 2015, a piora do quadro tornou-se ainda mais notável. O aumento das filas e a superlotação nos horários de almoço e jantar têm impedido o cessar do serviço no horário estipulado, fazendo com que o tempo destinado ao descanso dos trabalhadores seja gasto com a continuação do atendimento aos estudantes. “A rampa [local onde alunos se servem] não fecha mais no horário. Aos sábados, 15 horas a gente ainda tá trabalhando”, conta uma entrevistada.

Para diminuir os esforços repetitivos e evitar o aumento de lesões ocasionadas por esses trabalhos, o Sindicato vem fazendo uma série de apelos à SAS e à reitoria. Entre as reivindicações encontra-se um pedido polêmico: o fechamento provisório do Bandejão aos domingos. “Ainda não nos reunimos com os funcionários nem com os estudantes para debater o tema, mas evidentemente o fim dos bandejões aos domingos prejudica muito os estudantes, principalmente moradores do Crusp”, afirma Gabriela Ferro, aluna do segundo semestre de Geografia e representante do DCE-Livre da USP.

Aos domingos apenas sete auxiliares de cozinha e dois cozinheiros preparam as refeições para mais de 1400 pessoas. O ritmo de trabalho é descrito como desumano pelos empregados.

Na ocasião da última paralisação, dia 18, alguns funcionários reuniram-se com o superintendente da SAS, Waldyr Antonio Jorge, para entregar uma lista de reivindicações (ver box). Formou-se então uma comissão de trabalhadores que passará a discutir o tema. Nesta segunda-feira, 21, a comissão reuniu-se com Salvador Ferreira Silva, membro da Comissão Permanente de Relações do Trabalho (COPERT) da USP para debater mudanças.

Algumas demandas foram atendidas parcialmente pela SAS. Nos restaurantes Central e da Física, bandejas já ocupam o lugar dos pratos, enquanto os Bandejões da Saúde Pública, Enfermagem e Direito aguardam a mudança.

Denúncia

A reportagem entrou em contato com o Ministério Público do Trabalho (MPT), que, a partir de agora, investigará as condições nas quais os funcionários trabalham e aplicará as medidas legais necessárias para solucionar o caso.

O SAS foi procurado para responder às denúncias e, até a publicação desta matéria, não havia se pronunciado.

Por Jessica Bernardo e Juliana Meres