Programa da Sanfran amplia parcerias

Maior assessoria gratuita do Brasil investe em novos apoios após desvinculação como CA

Melissa, 44 anos, não para de elogiar a “Dra. Mariana” enquanto espera para ser atendida na recepção do Departamento Jurídico da XI de Agosto. “Ela me diz que ainda não é doutora, que está só estudando, mas eles aqui têm o dom”, comenta a transexual que há dois meses é assessorada juridicamente pelos alunos da Faculdade de Direito da USP na busca pelo registro de seu nome social. O DJ, apelido dado pelos estudantes ao Departamento Jurídico, realiza gratuitamente o trabalho de assessoria jurídica para pessoas que recebem até três salários mínimos, e é atualmente a maior instituição particular de assessoria gratuita do país no ramo. Desde abril, quando desvinculou-se do Centro Acadêmico XI de Agosto, a entidade vem ampliando seus projetos e parcerias.

A chegada da transexual ao décimo sétimo andar do Edifício Jurídico, sede da instituição, não foi espontânea. Melissa foi encaminhada pelo Centro de Referência e Defesa da Diversidade, serviço da Prefeitura de São Paulo administrado pelo Grupo Vidda, para o encontro com os estudantes de Direito do Largo São Francisco. Lá, recepcionada pelos calouros que participam da entidade, passou a receber acompanhamento de estagiários do Grupo de Estudos em Direito e Sexualidade (GEDS). A parceria com o Grupo, direcionada a ações de mudança de prenome e sexo, é uma das firmadas pelo DJ, que pretende contar já no final desse ano com encaminhamentos da Defensoria Pública do Estado.

Nos planos do Departamento está também uma parceria institucional com a Secretaria de Direitos Humanos de São Paulo – o DJ complementaria com assessoria jurídica o trabalho de assistência do órgão a quem precisa. Segundo a presidente da entidade, Anna Paula Sun, a Secretaria já encaminha casos ao Departamento informalmente. Já o convênio com a Defensoria Pública permite que o órgão, responsável por prestar orientação jurídica gratuita à população, repasse casos ao Departamento, uma vez que a demanda de atendimento é grande e não raro pessoas são submetidas a um longo período de espera. A parceria existia desde 2007, mas em 2014 foi suspendida por conta de uma dívida pública do Centro Acadêmico XI de Agosto, a que o DJ era filiado.

O Centro Acadêmico da faculdade carrega dívida de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) de um terreno seu, o “Campo do XI”, localizado no Ibirapuera – o CA perdeu a isenção do imposto e desde 1986 o IPTU do terreno que seria utilizado para o esporte universitário não é pago pois não há receita suficiente para arcar com a conta. Em abril desse ano o Departamento Jurídico se desvinculou legalmente do Centro Acadêmico da faculdade para voltar a firmar as parcerias. “Hoje tem uma dívida de alguns milhões e, para fazer qualquer tipo de contratação com o poder público, você precisa mostrar que a entidade não tem nenhum tipo de débito com ele”, explica Anna Paula.

Feminismo e extensão

O debate sobre feminismo, que vem ganhando espaço na universidade, também tornou-se uma frente de atuação do DJ em 2015. “No início do ano fizemos um curso de capacitação em Lei Maria da Penha para os estagiários aqui do Departamento e desse curso surgiu um grupo de estudos, o ‘Grupo de Enfrentamento Feminino’”, conta a presidente. Segundo Anna Paula, as estagiárias pertecentes ao grupo estão em um período de discussão de textos teóricos, mas pretendem estabelecer vínculos institucionais para receber casos de atuação prática em violência doméstica.

Apesar do serviço de extensão já tradicional e renomado, os estudantes que participam do DJ sentem que ainda há necessidade de inovação no campo dos auxílios aos cidadãos das periferias da cidade. Por isso, uma das iniciativas que estão tentando firmar é a formação de um projeto de educação em direitos. “A ideia seria conseguir levar alunos da Sanfran para alguns CEU’s da periferia e fazer debates sobre direitos básicos – eleitorais, do consumidor, trabalhistas, o que for necessário”, expõe Anna Paula. A atuação mais política da entidade vem crescendo com os anos.

Como funciona

Estudantes de todos os anos da Faculdade de Direito podem participar do DJ. Os calouros do curso, dada a pouca experiência jurídica, são direcionados à recepção daqueles que vão ao espaço em busca de auxílio e são responsáveis por ouvir as histórias das pessoas, e pelo cuidado da biblioteca da entidade. Os segundo-anistas realizam a função de vareio – vão aos fóruns e acompanham as demandas dos processo – além de poderem, assim como os estudantes dos demais anos da faculdade, desempenhar o cargo de estagiários-plantonistas, cujo trabalho é assessorar os casos ali levados.

Atualmente o DJ presta assistência a mais de três mil casos e conta com 32 calouros, 20 vareios e mais de 100 estagiários-plantonistas trabalhando para auxiliar a população carente de São Paulo.

Caso do refugiado

Enquanto Bashar al-Assad era reelegido na votação presidencial do regime sírio e derrotava outros dois candidatos indicados por ele próprio, um médico nascido no país chegava ao escritório do Departamento Jurídico, na Praça João Mendes, 62, a procura de auxílio para exercer sua profissão em nova terra. O médico formado na Tunísia, após terminar o curso, ao saber de um programa relacionado a medicina no Brasil, procurou a embaixada brasileira e foi informado de que poderia vir ao País para participar do programa “Mais Médicos”. Entrou no Brasil como refugiado e recebeu o RNE (Registro Nacional de Estrageiro). Para sua surpresa, não pôde participar. O edital do programa não previa integração de refugiados ou de cidadãos com nacionalidade síria.

Rafael Dzik, estagiário do DJ que cuida de seu caso, conta que o programa contempla apenas os países com índice igual ou superior a 1,8 médicos por mil habitantes – número indicado pela Estatística Mundial de Saúde, da OMS (Organização Mundial da Saúde). O programa dá prioridade a médicos brasileiros e no primeiro semestre de 2015, todas as vagas foram preenchidas por profissionais do Brasil.

Após apresentar sua situação, os assessores do Departamento propuseram a entrada com um mandado de segurança em Brasília com pedido de liminar para tentar incluí-lo no “Mais Médicos”. “Se a gente abre esse precedente de inclusão de pessoas refugiadas no programa, muita gente pode ser embarcada com isso”, diz o assessor jurídico. É comum que refugiados e imigrantes de países pobres, tais como o Haiti, tenham dificuldade em seguir com a carreira de antes nas novas moradas.

Quando procurou o DJ, o médico morava em um abrigo, uma espécie de albergue para estrangeiros. Após sair do abrigo, passou a viver com uma moça portuguesa em uma ocupação do centro da cidade. Há um mês houve a reintegração de posse da ocupação e hoje o médico trabalha no restaurante de uma família síria, com quem mora na grande SP.

É aguardada a decisão final do processo, que já teve parecer positivo do Ministério Público e está nas mãos da Advocacia Geral da União. O estudante afirma esperar que o processo volte em breve para a decisão final do juiz.

Arte: Arthur Aleixo
Arte: Arthur Aleixo

Por Jessica Bernardo e Roberta Vassallo