Quem se interessa pela história de Igor?

Como um jovem que trabalhava na USP acabou entre os mortos da chacina de Osasco

Na noite de uma quinta-feira do mês de agosto, Igor Silva Oliveira estava sentado em frente à porta de um bar na rua Astor Palamim, segurando um copo de cerveja com suas duas mãos. Após sair do trabalho e tomar um banho, o rapaz foi se encontrar com seu amigo Jonas dos Santos Soares no estabelecimento comercial – que fica a poucos metros de sua casa – para ‘trocar ideia’.

Como era de costume, Igor se lembrou de tranquilizar a mãe, Rosalba, acerca de seu paradeiro. “Já tô voltando”, dizia a última mensagem de texto, enviada pouco antes das dez da noite. Em hipótese alguma, o rapaz de 19 anos imaginou que jamais retornaria para sua residência. Antes que pudesse terminar o último gole de seu chope, um grupo de homens mascarados desceu de dois carros e descarregou uma rajada de tiros contra o estabelecimento, sacando a vida dos dois amigos.

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Foto: Vinícius Andrade

Igor trabalhava na USP. Você sabia? Provavelmente, não. Os principais veículos de comunicação do país têm pouco – ou nenhum – interesse em contar para você a história completa de Igor. Além do fato de que Igor havia acabado de completar 23 dias em seu trabalho temporário na obra do CEPEUSP (Centro de Práticas Esportivas da Universidade de São Paulo), o supervisor de seu serviço tinha planos para efetivá-lo: “O Igor era educado, prestativo e fácil de conversa. No pouco tempo em que ele trabalhou comigo aqui na obra, vi uma chance dele melhorar. Já tinha avisado o pessoal que queria ele conosco depois desse serviço provisório”, disse Gilson Anelle, encarregado-geral de obra e supervisor da terceirizada responsável pelo serviço no local.

Convenhamos: as dezenove mortes em Osasco pouco significam para uma sociedade que escolhe a dedo por qual ser humano vale a pena ficar de luto. Alguns ganham passeata, enquanto outros viram – com sorte – somente estatística. Morte em Osasco? Deve ser bandido. Ele estava no bar? Deveria ter ficado em casa. À noite? Aí já é demais. Fosse no Jardins, ao menos, o massacre até seria capaz de render uma bela capa de revista semanal. Mas foi lá longe.

No entanto, tudo aconteceu bem perto de Juarez Alves dos Santos, vizinho de Igor. Foi ele quem lhe arrumou um emprego no CEPE: “Fui eu que trouxe o moleque para a obra. O Igor estava desesperado para trabalhar, tinha largado a escola. E estava empolgado com a chance. Ele falou para a mãe dele que, quando recebesse o salário, iria finalmente começar a comprar a sua própria roupa”.

Juarez conheceu o pai de Igor, Carlos Antônio, antes mesmo do menino nascer. Quando ouviu o barulho dos tiros e a gritaria na vizinhança, no lúgubre dia 13, o encanador foi correndo em direção ao bar. Encontrou Igor deitado no chão, já morto. “Acompanhei o menino do primeiro até o último momento em que ele estava aqui na Terra”, lamenta o vizinho.

O número de assassinados no massacre também pouco nos assusta. Será que era para assustar? Em um intervalo de duas horas e quarenta minutos, o mundo perdeu um pintor, um artesão, um auxiliar de escritório, um mecânico, um entregador, um conferente, um estudante, um operador de máquinas, um ajudante-geral e mais outros nove seres humanos, cujas profissões não foram identificadas. Na madrugada do último dia 27, a adolescente Letícia Vieira foi a décima nona pessoa a não resistir diante de seus ferimentos.

Quem, afinal, tirou a vida dessas pessoas? Ao que quase tudo indica, policiais militares e guardas-civis. A ação de policiais nas execuções é a principal linha de investigação do caso, que aconteceu dois dias depois do assassinato de um guarda municipal em Barueri e uma semana após a morte de um policial militar em Osasco.

Até agora, mais de 50 policiais já foram ouvidos, sendo que 18 estão sendo investigados: onze soldados, dois cabos e cinco sargentos. Um soldado, que já foi preso, disse à Corregedoria da Polícia Militar que estava afastado das ruas e já havia sido indiciado por cinco (!) homicídios.

Os meios de comunicação –em ação quase que automática – acompanham o desenrolar do caso. Acompanham, é claro, com cuidado redobrado. Os relatos são frios e, infelizmente, toda a coragem que poderia ser atrelada ao texto jornalístico é amenizada. Quem está disposto a revelar informações desinteressantes a grupos poderosos (e que, como todos puderam perceber, não hesitam em matar)? Há boas exceções, mas a parcela da população que está por dentro do assunto é mínima. No próprio ambiente de trabalho de Igor, o CEPE, ninguém sabia que um homem que trabalhava na USP estava na lista de mortos. Apenas os funcionários da empresa tercerizada que atua no local sabiam do ocorrido.

O silêncio das semanais A revista Veja, em suas duas edições após a semana da chacina, não destinou um único espaço impresso para falar sobre o assunto. Uma de suas concorrentes, a revista Época, publicou uma nota curta ao lado de um infográfico, sem citar um único nome das 18 pessoas que haviam morrido até o momento. A matéria ocupa menos de 50% da página, com menos palavras do que a nota a respeito do comercial da Bombril e do que o anúncio de um prêmio promovido pela revista, sobre as “melhores empresas para o consumidor”. Na semana seguinte, a Época elegeu Pixuleco, o boneco inflável de quinze metros de altura do ex-presidente Lula, como “personagem da semana”.

Em sua última edição (02 de setembro), a mesma revista Veja destinou uma página inteira para falar sobre o assassinato da jornalista Alison Parker e do cinegrafista Adam Ward, mortos ao vivo por um ex-repórter da emissora para qual os dois trabalhavam.

Você certamente ficou sabendo desse caso, que aconteceu em Moneta (Virginia, EUA). Também ouviu falar sobre os grupos que, vestidos de verde e amarelo, se reuniram ao redor da tropa de choque para tirar “selfies” com policiais durante os protestos do dia 16 contra a presidente Dilma Rouseff. Isso tudo foi acompanhado atentamente.

Mas não se esqueça de Igor. Neste instante em que você termina de ler este artigo, há uma mãe inconformada, que foi retirar alguns documentos do filho no CEPE completamente arrasada. Há também um pai que ainda se lembra da fala do filho após mostrar as fotos do estádio da Cidade Universitária: “Olha aí, o senhor nunca vai jogar bola em um estádio desses. Eu vou, e ainda vou pegar no gol”. Na última sexta-feira, Igor estrearia no time de trabalhadores da USP, como goleiro.

Por Vinícius Andrade