Cidades também são espaços para plantar

Agricultura urbana mobiliza pessoas em busca de bem-estar e cidades melhores para se viver
Horta das Corujas, primeira horta ativista e comunitária em São Paulo, na região da Vila Madalena (foto: Marcos Santos)
Horta das Corujas, primeira horta ativista e comunitária em São Paulo, na região da Vila Madalena (foto: Marcos Santos)

No movimento da contracultura nos Estados Unidos, entre os anos 1960 e 1970, surgem os chamados “guerrilheiros verdes”: ativistas que passam a se apropriar de espaços abandonados e transformá-los em hortas, realizando intervenções de maneira horizontal e independente, sob influência de ideais anarquistas. Quatro décadas depois, num momento em que mais da metade da população mundial vive em cidades, a agricultura urbana surge novamente como alternativa que traz benefícios para o meio ambiente, o urbanismo, a educação e a saúde.

“A agricultura urbana funciona como um mecanismo que a sociedade civil tem para se organizar de maneira autônoma e independente do Estado. A partir disso, ela consegue promover mudanças na cidade”, explica Gustavo Nagib, geógrafo que estuda o potencial ativista da agricultura urbana em seu mestrado, na FFLCH. Gustavo integra o Grupo de Estudos em Agricultura Urbana (GEAU), que reúne pesquisadores de diferentes áreas e universidades em torno do tema. “Na sua essência, ela talvez seja ativista. É uma maneira de trazer mais autossuficiência para a cidade, onde as pessoas vivem”, diz. A agricultura urbana estaria em busca de um novo modelo de cidade, mais heterogêneo e democrático.

Apesar de não ser uma prática recente — segundo Gustavo, há registros históricos do século 17, na Inglaterra —, em São Paulo a agricultura urbana ativista tem se organizado melhor nos últimos anos. Nisso as redes sociais têm papel importante. Em 2011, foi criado no Facebook o grupo Hortelões Urbanos, articulado pelas jornalistas Claudia Visoni e Tatiana Achcar: são pessoas de todo o Brasil que trocam experiências e discutem a produção de alimentos na cidade, seja dentro de casa ou em áreas públicas. O termo “hortelão urbano” se espalhou, e hoje o grupo chega a quase 25 mil membros na rede social.

A Horta das Corujas foi a primeira que resultou desse envolvimento coletivo, na praça Dolores Ibarruri, região da Vila Madalena. Num espaço de 800m² há diversos cultivos e acesso a água limpa, mesmo nos tempos mais secos, desde que recuperaram uma das nascentes que abastecem o Córrego das Corujas. A horta é aberta a todos, com uma cerca baixa apenas para evitar a entrada de cachorros, e recebeu apoio do Cades (Conselho Regional de Meio Ambiente Desenvolvimento Sustentável e Cultura de Paz) da subprefeitura de Pinheiros.

Desde então, hortas comunitárias se espalharam pela cidade. Muitas delas podem ser localizadas nos mapas colaborativos do site do Movimento Urbano de Agroecologia de São Paulo (Muda SP) e do Cidades Comestíveis, plataforma lançada neste ano com patrocínio do edital municipal Redes e Ruas. O projeto busca conectar áreas e pessoas interessadas em agricultura urbana. “A principal experiência das hortas comunitárias é propiciar que pessoas de jeitos e gostos diferentes convivam entre si”, diz Claudia.

A jornalista começou a se envolver com agricultura urbana em 2008, plantando em casa. Ao longo desse percurso, encontrou e listou 18 motivos para incentivar a prática, que vão desde a educação nutricional até a conservação do espaço público.

As hortas normalmente acontecem em espaços como praças, parques e canteiros de avenidas. A Lei Municipal Nº 16.212 de 10 junho de 2015 trata da gestão participativa de praças públicas por meio de comitês de moradores, em conjunto com as Subprefeituras, e inclui em seu texto as hortas comunitárias. A cidade de São Paulo possui também um Programa de Agricultura Urbana e Periurbana (PROAURP), que incentiva a criação de hortas comunitárias e hortas caseiras para autoconsumo.

arte: Leandro Bernardo
arte: Leandro Bernardo

 

Fonte de renda

“Agricultura urbana também é política social. Num momento de crise econômica, essas pessoas se alimentam do que produzem e conseguem trocar entre si”, afirma Gustavo, citando o momento da Segunda Guerra, quando se disseminaram hortas comunitárias na Inglaterra e nos Estados Unidos, para combater a fome. O pesquisador também dá o exemplo de Detroit, cidade industrial estadunidense que foi abalada pela crise de 2008: 60% dos habitantes deixaram a cidade. Os mais pobres, que não tiveram condições de sair, passaram a produzir alimentos em lotes abandonados e constituir redes de venda e troca.

Plantar no espaço urbano pode ser, ainda, fonte de sustento. Em Parelheiros, extremo sul da cidade, cerca de 30 agricultores se reuniram no grupo Cooperapas para produzir e vender alimentos, o que garante boa parte de sua renda. Desde seu início, em 2011, essa cooperativa tem uma proposta agroecológica, também porque a região está situada em Áreas de Proteção Ambiental (APAs) e abriga nascentes de rios.

Segundo Angélica Nakamura, geógrafa que estuda a Cooperapas em seu mestrado na FFLCH e faz parte do GEAU, trata-se de uma área de agricultura periurbana (nos limites geográficos da cidade). Embora já sofra com alguns problemas da urbanização, como violência e especulação imobiliária, a região também fica aberta a relações diferentes com a cidade. “Eles têm os clientes muito próximos e eles não deixam de conversar com os hortelões urbanos”, diz a pesquisadora. A clientela é variada, desde supermercados até feiras, restaurantes e igrejas. “É uma rede muito grande. Está tudo muito ligado”, avalia.

A cooperativa tem se desenvolvido, apesar de algumas dificuldades de gestão e limitações, por serem produtores pequenos. Eles têm apoio da Casa de Agricultura Ecológica de Parelheiros, que busca dar suporte às centenas de agricultores presentes na região.

Qualidade de vida

Os benefícios das hortas comunitárias vão além de uma melhora na saúde, na vivência urbana e na relação com o meio ambiente. Silvana Ribeiro, em seu mestrado na Faculdade de Saúde Pública (FSP/USP), estudou hortas implementadas na cidade de Embu das Artes em parceria com a prefeitura local. Com base em relatos de pessoas que passaram a participar das hortas, a pesquisadora identificou uma série de mudanças em casos como depressão, diabetes, colesterol e também problemas de socialização. “Pessoas relataram a redução no consumo de remédios e melhora na integração social, perdendo a timidez, ou melhorando algum tipo de fobia”, diz Silvana.

O contato com a natureza e com outros membros da comunidade teve impacto positivo na saúde, no bem-estar e na alimentação. As comunidades também passaram a se unir mais e ampliaram a participação política no município, segundo Silvana. Houve benefícios ambientais, através da retenção de água da chuva e melhor climatização. A quantidade de lixo, por exemplo, foi reduzida pelo uso de resíduos como caixotes, pedaços de madeira e cascas de frutas na construção ou na adubação dos canteiros.

Para Silvana, uma das idealizadoras do GEAU, ainda faltam políticas públicas para a agricultura urbana. Ela comenta que os governantes priorizam a perspectiva do trabalho e da geração de renda, o que muitas vezes não ocorre com a intensidade desejada. “Os gestores públicos deveriam entender que a agricultura urbana talvez não tenha um valor econômico direto. Mas ele pode ser indireto, pois a pessoa em contato com a horta vai evitar doenças e vai procurar menos o centro de saúde; então, há ganhos indiretos”, explica a pesquisadora.

É mesmo saudável?

Uma questão também surgiu entre os hortelões: até que ponto é seguro comer alimentos produzidos em meio a poluição urbana? É o que investiga Luís Fernando Amato, também do GEAU e doutorando da Faculdade de Medicina da USP. Sua pesquisa consiste em analisar a concentração de metais nas plantas e no solo, numa correlação com a poluição do ar local.

Horta do Ciclista, no canteiro central da Avenida Paulista, altura da Rua da Consolação (foto: Gustavo Nagib)
Horta do Ciclista, no canteiro central da Avenida Paulista, altura da Rua da Consolação (foto: Gustavo Nagib)

Para isso, Luís está estudando dez hortas comunitárias de São Paulo, como a Horta das Corujas, a Horta do Ciclista (Avenida Paulista), a Horta do Centro Cultural São Paulo e a Horta do Instituto de Energia e Ambiente (IEE/USP). O pesquisador analisou um quadro crítico: couve e espinafre, hortaliças que tendem a acumular muitos resíduos, foram expostas a um período de até 90 dias, numa época seca do ano. Sabe-se que existe uma relação entre a distância das vias públicas e a contaminação das hortas. O que falta agora em sua pesquisa é associar os dados obtidos para chegar a conclusões.

Estudos similares já foram feitos na Alemanha e em Portugal, mas nunca no Brasil. Os resultados estrangeiros apontaram concentrações de elementos como chumbo e cádmio acima do recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), além de identificar o carro como a principal origem dos elementos. Segundo Luís, há medidas que podem amenizar o problema, como a inclusão de obstáculos verticais. Um exemplo seriam árvores que, colocadas próximas às hortas, podem conter parte da poluição do ar.

Para Luís, esses estudos devem ser constantes e ampliados no Brasil. “É preciso analisar outros tipos de legumes e vegetais, para ir formando uma espécie de manual de boas práticas da agricultura urbana”, propõe.

Por Barbara MonfrinatoDimítria Coutinho