Filhos de Maria nascidos no Higienópolis

Sentimento materno entre babás e filhos de patrões evidenciam inversão de papéis nas famílias
Foto: Jessica Bernardo
Foto: Jessica Bernardo

Todo mundo pensa que ela é mãe. “Não tem cara de mãe?”, anuncia Raul, de seis anos, enquanto sobe os degraus do escorregador. Embora esteja vestindo preto, contrastando com os uniformes brancos imaculados que geralmente sinalizam sua ocupação, Maria é babá de Raul há quatro anos, tendo acompanhado seu irmão mais novo desde o nascimento. No final do ano, eles se separam: a família vai para Ribeirão Preto, enquanto Maria continua em sua casa em Suzano, município da Grande São Paulo. “A gente sente saudades, mas vai fazer o que? Já tem um monte de família me querendo!”, garante Maria, que trabalha como babá há quase duas décadas. Maria tem 50 anos e nenhum filho; nunca uma gestação vingou: “Deus não me deu filho, mas me deu filhos do coração”, afirma em referência às crianças que cuidou durante a vida.
Maria José, uma senhora de mais 60 anos, tornou-se babá há apenas dois anos e meio, mas conta ter larga experiência cuidando de crianças, entre filhos, sobrinhos e conhecidos que iam parando na soleira da sua porta quando as mães não podiam dar cuidados. “Filhos eu tenho só três, mas adotados são mais de 20”, lembra a doméstica. As duas Marias levam quase todas as manhãs “suas” crianças para correr e brincar ao ar livre no Parque Buenos Aires, no bairro de Higienópolis. Por lá, até cerca de 11h da manhã, os uniformes branquinhos das babás se destacam e os carrinhos de bebê se aglomeram enfileirados num canto. Enquanto as domésticas predominam, vez ou outra é possível avistar algumas mães e, mais raramente, pais junto de seus filhos.
Essas domésticas fazem parte do contingente de 6,7 milhões de mulheres em empregos domésticos existente atualmente no Brasil, de acordo com números da Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgados em 2013. O relatório da organização aponta que 17% das mulheres que trabalham no Brasil realizam tarefas domésticas. Números do IBGE mostram que a quantidade de trabalhadores domésticos teve ligeiro aumento neste ano, o que, ainda de acordo com o instituto, ocorreria devido ao retorno ou ingresso de algumas trabalhadoras no mercado doméstico.

Foto: Jessica Bernardo
Foto: Jessica Bernardo

Como representante dessa nova leva de domésticas está Mary, que, diante do desaquecimento do mercado de semi jóias, onde atuava, também trabalha como babá para uma família de Higienopolis. Mesmo com o pouco tempo de convívio, ela diz que sua relação com o menino de dois anos que cuida foi de “amor à primeira vista”. Aos finais de semana, Mary tem folga: “a mãe dele fala que ele sente muita falta de mim, só pergunta quando volto”. Antes de conseguir o emprego, passou por um curso de formação de babás, em que, dentre itens sobre higiene e cuidado de crianças, existem instruções para que a profissional não interfira na educação que os pais optam por oferecer aos seus filhos. Esse tipo de delimitação entre a atuação profissional e a família é cada vez mais frequente.

O pesquisador Jefferson Belarmino de Freitas, que estudou emprego doméstico e realizou entrevistas com trabalhadoras entre 2004 e 2011, explica que “discursos falsamente democráticos” presentes em expressões dirigidas às domésticas – como a frase “você é da família” – vêm sendo menos tolerados, principalmente entre as mulheres mais jovens. Bia, uma das babás que frequentam o Parque Buenos Aires, é empregada em casas de família desde 1976. Hoje, trabalha em ritmo raro entre domésticas: se dedica exclusivamente a uma menininha 24 horas por dia por 6 dias na semana, acompanhando a família inclusive em viagens. Apesar de reconhecer o vínculo afetivo criado com cada uma das crianças – algumas hoje já adultas e que ela ainda mantém contato -, Bia é enfática ao afirmar: “A doméstica tem que se impôr, não dá pra aceitar ser tratada como eram as empregadas da década de 1980”.

 

Por Letícia Paiva