Muito além de “Que horas ela volta?”

Problemas enfrentados pelas mães brasileiras ultrapassam questões da ficção de Anna Muylaert
Ilustração: Barbara Monfrinato
Ilustração: Barbara Monfrinato

Jéssica, Fabinho, Val e Bárbara ganharam as telas do cinema ao mesmo tempo em que ganharam a boca do povo. Lançado em 28 de agosto nos cinemas brasileiros, “Que Horas Ela Volta?”, drama de Anna Muylaert, conta a história de Val, empregada doméstica interpretada por Regina Casé. No filme, Val deixa sua filha, Jéssica, ainda criança, para trabalhar em São Paulo, e acaba criando, durante 13 anos, o filho de sua patroa, Bárbara. Enquanto isso, em Pernambuco, Jéssica cresce sob os cuidados de terceiros. A narrativa cinematográfica pode ser facilmente transposta para a realidade.

Aos 12 anos, Anderson viu sua mãe deixar Recife, no estado do Pernambuco, para trabalhar na distante e desconhecida São Paulo. O menino ficou aos cuidados da avó, enquanto a mãe, Ana Rosa, veio ao encontro de seu avô, que a ajudaria a conseguir um emprego de doméstica na mansão onde trabalhava. O emprego prometido ela acabou não conseguindo, e voltou à sua antiga ocupação: manicure em salões na periferia. Mais tarde, chegou a atuar como babá de duas meninas, cuidando delas enquanto via o seu filho crescer através de fotografias enviadas pelo correio. Distantes por onze anos, Ana e Anderson se falavam por telefone todas as noites, religiosamente. Ano passado, a mãe conseguiu visitar o filho em Recife, mas logo voltou ao trabalho em São Paulo.

As ligações entre Ana e Anderson mudaram um pouco nos últimos tempos: a mãe diz se arrepender de ter deixado o filho longe de seus cuidados. Ana se ressente de não ter passado mais tempo próxima do filho. “Perdi muitas fases da vida dele, sua adolescência, todo seu desenvolvimento. Quem criou ele foi minha mãe. Eu mandava o dinheiro – que nunca deixei de mandar, às vezes mais, às vezes menos”..

Sem creches

Se fosse nos dias de hoje, em São Paulo, a filha de Val provavelmente estaria entre as quase 120 mil crianças na lista de espera por vaga em uma das creches da prefeitura. Com altas mensalidades, as creches particulares em tempo integral tornam-se privilégio para poucos. Chefes de 38,7% das famílias brasileiras, de acordo com o IBGE, e historicamente responsabilizadas pela criação dos filhos, as mulheres são diretamente afetadas pelo problema das vagas e têm que se desdobrar para solucionar a questão.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece como dever do Estado conceder creches e pré-escolas para crianças de até seis anos. A lei, contudo, não é respeitada. Atualmente, segundo dados coletados pelo Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul, faltam 2,7 milhões de vagas em creches em todo o Brasil. Em terceiro lugar no ranking das cidades que mais atendem a demanda do município, a capital São Paulo não chega a abrigar nem metade dos inscritos para disputar a vaga. Apenas as cidades de Vitória, no Espírito Santo, e Florianópolis, em Santa Catarina, acolhem mais de 50% das crianças inscritas.

Mãe de dois filhos, Juan, de três anos, e Arthur, de um ano e cinco meses, Rosimeire Barbosa encontrou na irmã a alternativa para lidar com a dificuldade. Sem condições financeiras para deixar o trabalho enquanto esperava pela abertura de vagas, a moradora do bairro Rio Pequeno, na periferia da Zona Oeste de São Paulo, passou a dividir com a irmã, Patrícia, a mensalidade de R$ 540 da creche particular para o caçula. “Como eu não tenho filhos acabo ajudando”, conta Patrícia. Colega de trabalho de Patrícia, Jessica Cristina Teixeira também passou por complicações para garantir vagas.

Nascida prematura, Thifanny, filha de Jessica, desenvolveu hidrocefalia – acúmulo excessivo de líquido no cérebro. A doença provoca inchaço cerebral e, para evitar complicações, a bebê teve uma válvula instalada na região. Sua condição particular tornava necessários cuidados específicos e, por isso, ela não poderia ficar sem creche. Jessica recorreu então à Defensoria Pública do Estado para, por meio de ordem judicial, matricular a filha em uma das vagas disponíveis. Com nove meses de idade, Thifanny entrou na creche.

Mães em tempo integral

Algumas mães que têm a possibilidade de se afastar do emprego por algum tempo optam por se dedicar inteiramente ao cuidado dos filhos. Esse é o caso de Camila Fernandes, natural do Rio Grande do Norte, que escolheu dar uma pausa no trabalho para poder passar mais tempo com o filho bebê. Aproveitando a liberdade da sua área de trabalho, o audiovisual, Camila se preparou durante a gravidez para passar os próximos meses em casa ao lado do filho: “Resolvi trabalhar bastante no início da gravidez e juntar algum dinheiro para que eu não dependesse financeiramente de ninguém”, explica.

A mãe de Bento conta, no entanto, que muitos dos clientes que a contataram no período da gravidez tiveram medo de que ela não conseguisse executar o trabalho da mesma forma, e não a empregaram. “O plano era bom, mas não deu certo, quase não tive trabalho para executar”. Assim, mesmo tendo planejado o afastamento, Camila e seu companheiro têm sentido as dificuldades: “A gente precisou mudar os hábitos, cortar gastos supérfluos. Não compensa financeiramente”. Ela planeja voltar ao mercado de trabalho apenas quando o filho tiver desmamado. Sobre os próximos anos, diz que, quando Bento passar a frequentar a escolinha, o companheiro e ela irão se intercalar nos cuidados. “Para que os dois possam trabalhar e tenham a mesma responsabilidade com a criação de nosso filho”, justifica.

E a USP com isso?

A falta de vagas chega também à USP, que enfrenta desde o começo de 2015 um corte nas vagas destinadas aos filhos das estudantes. Em matéria publicada no período, o Jornal do Campus mostrou que ao menos 140 vagas foram suspensas das creches da capital e do interior como um reflexo do Plano de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV) implementado pelo reitor Marco Antonio Zago no final de 2014.

Para o próximo dia 24 de outubro, a Comissão de Mobilização das Creches da USP, grupo formado por pais, professores e funcionários das Creches da universidade, organizou um evento intitulado “Grande piquenique das crianças, mães e pais pelo direito a vagas nas creches da USP”. O evento pretende discutir o cenário atual das creches que tende a piorar no próximo ano. A Comissão alega que não foram abertas inscrições para a reposição das vagas relativas às crianças que estão saindo este ano, o que deixaria 40% das possíveis vagas ociosas.

Por Jessica Bernardo e Letícia Paiva