“Nunca fui reconhecida pelo meu trabalho”

A dura rotina dos terceirizados da USP responsáveis por serviços como a limpeza das unidades
Opinião - 448
Foto: Vinícius Andrade

Há pouco mais de seis anos, Shirley deixou o estado do Mato Grosso e começou a trabalhar na melhor faculdade de medicina do Brasil, em São Paulo.  Seu trabalho começa cedo – às 4 horas da manhã – e a limpeza de cerca de dez anfiteatros precisa estar completa antes das 8 horas, para que os futuros médicos e médicas do país possam ampliar seus conhecimentos em suas arrumadas salas de aula.

Quando Shirley entra no antigo e charmoso prédio das Clínicas e veste o uniforme verde da empresa terceirizada para qual trabalha, ela deixa de existir. Não é mais Shirley: ninguém sabe que ela deixou a sogra em Mato Grosso, tampouco que tem de lidar com a recente perda do filho na capital paulista. “Me sinto deixada de lado pelos alunos. Você entra, limpa, sai, eles olham para você e não falam nada. Eles estão no mundo deles. E nós ficamos de fora”, diz a auxiliar de limpeza. Seu colega de trabalho, o auxiliar de laboratório Francisco, dispara a seguinte frase: “Quer conhecer nossa rotina? Desce, veste o uniforme da terceirizada e tenta conversar com os alunos. Eles vão virar a cara para você. Vai lá, coloca o uniforme e veja como eles vão te olhar assustados”.

Francisco trabalha há cinco anos na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e revela que, de cem alunos, dois dão um “bom dia”. “Às vezes, nenhum fala”, completa o auxiliar, que fez somente uma única amizade com alunos durante todo esse tempo:  “E só porque o aluno estava no segundo ano e estagiava no meu laboratório. Aluno conversa muito entre si, na tribo deles. Entre nós [funcionários] e eles, não existe muita comunicação. O aluno te para só em busca de informações, e acha que você é obrigado a saber de todas as coisas aqui do prédio. Se eu falar que não sei onde fica tal sala, ele já faz uma cara feia”.

“Estou aqui todos os dias e a pessoa ainda acha que você vai roubá-la”

Raimunda, que também trabalha na FMUSP, sofre da mesma invisibilidade. Quando o olhar para ela não é de desprezo, é assustado: “Uma vez, quando entrei para arrumar uma sala, teve uma aluna que guardou todos os pertences que estavam em cima da mesa na bolsa. Poxa vida, você não se sente bem com isso. Estou aqui todos os dias e a pessoa ainda acha que você vai roubá-la”.

Os funcionários não tem praticamente ninguém com quem falar sobre as situações desagradáveis. “Quando relatamos esse tipo de coisa para o nosso supervisor, ele fala: ‘ah, é assim mesmo’. Assim mesmo? Parece que os estudantes e os professores não sabem que do mesmo lugar de onde eles vieram, a gente também veio. E todos nós um dia vamos voltar.”

Carol é a mais nova do grupo: está limpando a faculdade há apenas três meses e já sofre com o mesmo problema. “Queria saber por que a gente que faz limpeza é discriminado. Aqui, cada um pensa que precisa ser melhor do que o outro. ‘Ah, já tenho carro, casa, para que vou dar atenção para a faxineira?’. Alguns poucos são legais, perguntam se você está bem. Mas a gente fica triste. Se algum professor não for com a nossa cara, eles mandam vir outro funcionário limpar a sala deles”, afirma. Recentemente, Carol entrou com mais duas funcionárias dentro de um elevador, que era utilizado por duas alunas e um aluno. Assim que as servidoras adentraram o espaço, os estudantes saíram: “Uma aluna falou: ‘vamos pegar outro’. Não entendi o motivo para eles terem saído, porque o elevador não estava cheio. A gente estava até sem o carrinho [de limpeza]”.

“A relação da maioria deles é a seguinte: ‘eu sou superior e você que se dane’”

Há dez anos na Engenharia Politécnica, Rute conta que não são só os alunos que desrespeitam os faxineiros. “Uma vez, um professor foi reclamar comigo se não tinha um outro horário para eu limpar o banheiro, porque ele queria usá-lo. Eu falei: ‘não tem outro horário. Tem esse. Se não quiser, vai ficar sujo’. A gente também tem hora de ir embora. Já ganhamos uma miséria, não ganhamos hora extra para isso e vamos ficar até a hora que eles querem?”. Ao menos, Rute comemora o fato de não ter recebido o “presente” que uma colega de trabalho recebeu. Há uns meses, uma menina da limpeza viu uma caixa de papelão em formato de presente que foi deixada em cima de uma mesa em uma sala de aula que estava para ser limpa. “Ela pensou que tinham deixado uma surpresa pra ela. Quando abriu, tinha merda dentro. Aqui, é uma humilhação total”, afirma.

Oziel ,também funcionário da Poli, trabalha na portaria da faculdade e conta: “Alguns alunos tratam você como pessoa de segundo escalão. De dez pessoas, apenas uma dá um ‘bom dia’. Quem me cumprimenta geralmente são aqueles que vêm de uma classe social mais baixa, ou que vêm do interior. A relação da maioria deles é a seguinte: ‘Eu sou superior e você que se dane’. Quem trabalha é praticamente uma pessoa invisível”.

“O respeito tem que ser para todos, independente da classe e da cor. Mas não é assim”

“Tem professores que passam e não dão nem bom dia. É como se você nem existisse”, conta Francisca, que trabalha com limpeza no Instituto de Matemática e Estatística (IME). “Metade dos funcionários foram cortados por causa da crise e o pessoal quer a limpeza do mesmo jeito que era antes. Tem gente que quer os espaços impecáveis, e não tem condições para que isso aconteça”. Ela contou que alguns professores, ao verem um fio de cabelo no chão, já mandam e-mail para a diretoria da faculdade reclamando do trabalho do setor da limpeza.

Roseli trabalha com Francisca e admite que o único reconhecimento que teve foi quando lavou a sala de algum professor e ele agradeceu: “Tem gente que, além de não agradecer, reclama. Isso deixa a gente triste. O respeito tem que ser para todos, independente da classe e da cor. Mas não é assim”.

Francisca lembra algumas exceções: “também tem professor muito legal, que compensa esse outro lado. No final do ano, os professores daqui do IME dão caixinha para todas as meninas”. O dinheirinho tenta amenizar os vários chicletes jogados no chão e deixados embaixo da carteira pelos alunos. O pessoal da limpeza, pacientemente, tira as gomas ressecadas com espátulas. No banheiro, os funcionários da terceirizada que cuida do local gastam horas limpando frases revolucionárias, obscenidades e outros recados. “Eles pensam que as empregadas vão vir depois. Mas não tem empregada aqui. Somos funcionários da matemática. Fazemos limpeza, mas não somos propriedade particular de ninguém”.

“Sou pobre e trabalho na limpeza, mas sempre cumprimento e peço licença”

Regina trabalha há cinco anos das 6 até às 15 horas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). A respeito da relação entre alunos e funcionários, afirma que poderia ser melhor: “Alguns não compreendem o trabalho da gente. Quando você estuda, a gente espera de você um pouco de educação. Pelo menos um ‘bom dia’, um ‘boa tarde’. Somos ignorados e deixados de lado. Não sei se é porque a gente trabalha na limpeza, mas tem alunos e professores que passam e nem olham para a sua cara. Mas cada um é cada um, a gente respeita”, diz Regina. Ela conta que sempre faz a sua parte: “Sou pobre e trabalho na limpeza, mas sempre cumprimento e peço licença”.

Quésia está há quatro anos trabalhando na Escola de Comunicações e Artes (ECA). Atualmente, fica na portaria do prédio central e conta: “Alguns alunos são meio ignorantes. Às vezes eu falo ‘bom dia’ e a pessoa nem ‘tchum’. Com os professores é a mesma coisa. Mas tudo bem, não ligo, não”. Socorro, que trabalha na limpeza da ECA, tenta justificar os momentos em que seus “bom dias” não recebem resposta: “Os [alunos] que não falam devem fazer isso porque estão muito ocupados, né?”.

Para Shirley, da FMUSP, não há mais sentido em morar na cidade de São Paulo. Em dezembro, retornará ao calor do Mato Grosso – para mais perto de sua família. “Lá, só da gente ficar na sombra, já fica queimado. É muito quente”. Do período em que trabahou na metrópole, ela espera esquecer a morte de seu filho. E entender porque desaparece todas as manhãs: “Os alunos são muito estranhos. Mas é o jeitinho deles, né? Vou embora daqui a alguns meses e nunca fui reconhecida. Pode até ser que sintam a minha falta, mas eu já vou ter ido embora. Quando notarem a falta da minha limpeza, vão perguntar: ‘quem era que limpava a sala?’. Mas aí não vai dar tempo deles me conhecerem. Não vai ter foto, não vai ter nada”.

Por Vinícius Andrade