Passeios revelam segredos na São Francisco

Visita guiada expõe espaços desconhecidos e antiga sociedade secreta da Faculdade de Direito

Do lado de dentro da Faculdade de Direito, na entrada voltada para o Largo São Francisco, no centro de São Paulo, é possível ver a cidade em ebulição. Pessoas atravessam a calçada a passos largos sem voltar o olhar para o prédio; o ritmo só é interrompido quando, vez ou outra, algum apressadinho para de súbito e faz um sinal da cruz desajeitado em frente à Faculdade. “Muita gente pensa que aqui já é a Igreja São Francisco, que fica ali do lado”, diz a bibliotecária Maria Lúcia Beffa, que vem guiando visitas mensais abertas à comunidade para explorar a Faculdade de Direito.

De fato, onde hoje fica o prédio acadêmico já existiu o colonial Convento de São Francisco, que daria lugar à Faculdade no século XIX. A confusão permanece, pois o interior do prédio ainda é pouco conhecido pelos que transitam na região; tem quem acredite que não é qualquer um que pode entrar no local. As visitas, organizadas pela direção da unidade e guiadas pelas bibliotecárias Maria Lúcia Beffa e Rosangela Puppo, buscam atrair a comunidade para conhecer melhor os espaços e a história da faculdade centenária – tombada e de livre acesso, mas pouco visitada pelo público externo à Universidade de São Paulo. Quem participa das visitas são, geralmente, antigos alunos que não tiveram a oportunidade de adentrar certos espaços e vestibulandos curiosos.

(foto: Letícia Paiva)
(foto: Letícia Paiva)

Toda última sexta-feira do mês, no período da tarde, os visitantes se encontram na biblioteca da Faculdade, onde o tour começa. “As pessoas costumam colocar a cabeça pra dentro da entrada da biblioteca e pensar ‘que pequeninha’, sem saber que ela não termina ali”, conta a bibliotecária Rosangela. A entrada da biblioteca, onde fica a sala de estudos e algumas poucas centenas de livros nas prateleiras, é o único local que os estudantes têm acesso. Através de uma pequena porta em madeira fica escondido o enorme acervo daquela que é a biblioteca pública mais antiga da cidade, estabelecida em 1825, antes mesmo da fundação da Faculdade em 1827. O acervo inicial era fruto da reunião de volumes por longa data pelos frades franciscanos.

A área, fechada aos olhares do público, só é acessada pelas bibliotecárias. As visitas são uma oportunidade de ter acesso ao acervo, que pode ser consultado pelos estudantes através de plataformas online ou solicitação a alguma das bibliotecárias, mas nunca direto das estantes internas. “Além de contarmos com volumes às vezes muito antigos e frágeis, os livros não são organizados por autor ou tema, e sim por tamanho. É muito difícil que alguém que não entende essa dinâmica consiga encontrar o que procura na mesma velocidade que nós”, explica Maria Lúcia. Os livros solicitados são levados do acervo à sala de leitura por uma espécie de elevador, instalada no projeto do escritório de Ramos de Azevedo de 1933, quando a Faculdade adquiriu as feições neoclássicas que tem hoje.

Foi após um incêndio em 1880 na Faculdade de Direito, responsável por destruir a biblioteca e o arquivo geral, que o Corpo de Bombeiros foi criado na cidade de São Paulo. Essa e outras curiosidades são lembradas pelas bibliotecárias para demonstrar como a história da Faculdade e a de São Paulo se cruzam. Andando pelos corredores, não é difícil identificar alguns dos personagens que estampam os quadros expostos nos corredores, juristas e políticos ilustres, como Ruy Barbosa, ministro na Primeira República. No Salão Nobre, os nomes de Castro Alves, Fagundes Varela e Álvares de Azevedo aparecem em posição de destaque; nenhum dos três conseguiu se formar, no entanto.

(foto: Letícia Paiva)
(foto: Letícia Paiva)

Entre tantos rostos conhecidos, destaca-se o de Luís Gama, que aparece em quadro pequeno se comparado aos suntuosos que rodeiam as salas. Feito escravo aos 10 anos, Gama conseguiu se libertar judicialmente, atuando, posteriormente, como advogado de pobres e escravizados. Ele próprio estima, em carta datada de poucos anos antes de sua morte, que tenha conquistado nos tribunais cerca de 500 cartas de alforria. As bibliotecárias lembram que Gama chegou a estudar na Faculdade de Direito, mas não completou o curso devido ao preconceito. Outro negro, um dos poucos, que aparece enquadrado é Epaminondas, único funcionário a receber a honraria.

Sociedade Secreta

Um dos últimos pontos percorridos pela visita é o pátio onde está o túmulo de Júlio Frank, natural da Alemanha e professor da Faculdade na primeira metade do século XIX. O professor teria morrido de pneumonia em 1841 e, não existindo cemitério digno para não católicos na época, foi sepultado em um dos pátios internos da São Francisco. Júlio Frank foi responsável por fundar, em conjunto com um aluno e com o secretário de governo da província de São Paulo na época, uma associação secreta inspirada nas Burschenschaften alemãs, ou Confraria dos Camaradas. Na Faculdade de Direito, a associação se chamaria Bucha, e seus membros seriam escolhidos por sua lisura de caráter e inteligência.

O historiador Paulo Rezzutti, membro titular do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, explica que os objetivos iniciais da Bucha eram filantrópicos: ajudar os alunos sem recursos a continuar os estudos, por exemplo. “Depois essa estrutura fraterna extrapolou as Arcadas e acabou se transformando em uma forma de se alcançar altos cargos no governo”, afirma. Os antigos alunos da Faculdade que pertenciam à Bucha e ocupavam posições no poder nacional favoreciam outros membros da organização na distribuição de cargos governamentais. Durante o Império, havia políticos, artistas e intelectuais destacados fazendo parte da Bucha, tal como Castro Alves e Álvares de Azevedo. Dos 14 presidentes eleitos da Primeira República, oito eram da sociedade.

De acordo com Rezzutti, a Bucha pode ser considerada uma sociedade para-maçônica: “Houve contato entre seus membros e muitos bucheiros acabaram se tornando maçons”. O sigilo sobre os rituais e o funcionamento da Bucha acabou sendo quebrado na década de 1920, graças a uma disputa pela liderança do Centro Acadêmico XI de Agosto. “Os estudantes passaram a acreditar, não sem razão, que para conseguir ser eleito para o XI de Agosto era necessário pertencer à Bucha. O escândalo criado pelos dissidentes foi grande, chegando a ser criado um jornalzinho intitulado ‘A Bruxa’”. Depois desse episódio, foi difícil manter o segredo. O declínio da Bucha ocorreu na década de 1930, mas o historiador Pedro Bandecchi afirmava, já na década de 1980, que a associação ainda estava em atividade. Sobre isso, Rezzutti diz “A maior dúvida de todas continua sendo: ‘Ela ainda existe?’”.

(foto: Letícia Paiva)
(foto: Letícia Paiva)

Por Letícia Paiva