Um Estatuto contra a Família Brasileira

Projeto que pretende remover direitos de núcleos familiares não convencionais é anticonstitucional e ignora a realidade do país
ilustração: Rafael Marquetto
ilustração: Rafael Marquetto

Escrever um texto opinativo sobre o Estatuto da Família não é tarefa fácil. Isso porque escrevemos na tentativa de persuadir um leitor conservador, não aberto ao que foge do convencional, com o qual não lidamos com frequência. Sabemos que, por mais leiga que uma pessoa seja em relação aos dizeres da Constituição, ela defenderá a opinião de que todas as pessoas devem possuir direitos iguais no Brasil, caso seja dotada de sensatez. No entanto, nos deparamos hoje com este projeto de lei, aprovado por 17 membros da Câmara Federal, que visa remover os direitos de muitas famílias brasileiras, ao limitar união familiar ao “núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher”.

Qual a melhor maneira de apelar à razão dos que, por questões religiosas ou de outra ordem, julgam válida essa proposta restritiva? O Estatuto da Família, além de entrar em conflito com os direitos humanos, ignora a realidade familiar da maioria (segundo o IBGE) dos brasileiros, que não vive em uma família patriarcal e corre o risco de perder direitos básicos. Assim, dar voz a essas famílias que, apesar de majoritárias, são invisíveis aos olhos de alguns, talvez seja a melhor estratégia para a defesa do ponto de vista que pretendemos expor neste texto.

Famílias de casais homossexuais

Bárbara* tem 15 anos e, aos 9, foi adotada por Júlia, após a morte de sua mãe biológica. Quando tornou-se órfã, foi rapidamente rejeitada por seus parentes consanguíneos, que, segundo ela, a apelidaram de “ratinha imunda”. Cerca de 5 meses depois da adoção, Júlia começou um relacionamento com Raquel, que entrou para a família e é chamada por Bárbara de “mãezinha” – “mãe” é como a adolescente chama a Júlia. Por desejarem aumentar a família e para atender a um desejo antigo de Bárbara, dois anos depois da primeira adoção, Júlia e Raquel adotaram uma segunda filha, Sabrina, que tinha dois anos de idade na época. Dessa vez, o nome de ambas as mães consta na certidão de adoção.

Apesar de se considerar feliz e completa, Bárbara se mostra apreensiva com a possibilidade de aprovação do Estatuto da Família: “descobri hoje que uma comissão da Câmara me tirou da minha família”, escreveu a adolescente em uma rede social no último dia 25 de setembro. Segundo Rodrigo da Cunha Pereira, advogado presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, a aprovação de tal Estatuto, na prática, acarretaria a anulação de casamentos e de contratos de adoção feitos por casais homoafetivos. É curioso pensar que, no último dia 5 de outubro, comemoramos os 27 anos da Constituição Federal, ao mesmo tempo em que famílias como a de Bárbara ainda receiam perder o direito de igualdade, há tantos anos garantido.

Cláudio é professor da USP e mantém uma relação estável com Pedro há 11 anos. Hoje, Pedro consta na base de dados dos recursos humanos da Universidade como cônjuge de Cláudio, tendo assegurados direitos previdenciários e de acesso a outros benefícios oferecidos a funcionários da USP. Ao mesmo tempo, Cláudio também usufrui de direitos oriundos da colocação profissional de seu parceiro, como acesso a um bom plano de saúde particular. Assim como Bárbara, o professor também tem receio de ter sua vida alterada e de perder esses e outros direitos. Ele e Pedro planejam transformar a união estável em casamento e adotar uma criança para ampliar a família. “Recebemos com tristeza a notícia do Estatuto, mas ainda não perdemos a esperança de que esse projeto inescrupuloso seja barrado”, disse o professor.

Consultamos alguns advogados que foram unânimes em relação à inviabilidade jurídica do Estatuto e garantiram que o mesmo, caso aprovado no Plenário da Câmara, no Senado e sancionado pela Presidência, ainda assim será declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). “Parece que quem fez o projeto desconhece completamente os sistemas de direitos criados pela Constituição, bem como o papel de diversas normas que possuem em seu conteúdo dispositivos de afirmação e priorização da família enquanto local importante e necessário para o desenvolvimento humano, construção de afeto e valores humanitários entre as pessoas”, comentou André Alcântara, advogado especialista em Direitos Humanos.

Núcleo formado por avós

O projeto de lei que visa instituir o Estatuto da Família foi claramente criado numa tentativa de barrar conquistas históricas dos casais homossexuais brasileiros. Em 2011, o STF estabeleceu que pessoas do mesmo sexo podem constituir entidade familiar. A partir de então, várias outras conquistas se seguiram, possibilitando o casamento, a adoção e outros direitos ligados à relação conjugal e parental a casais homoafetivos.

No entanto, com sua visão limitada e intolerante, os responsáveis pelo projeto em questão acabaram atingindo também outras configurações familiares não tradicionais, além das homoafetivas. É o caso da família de Suellen, que, junto com o marido, Marcos, cria quatro netos, com idades de 15, 12, 5 e 2 anos. O pai das crianças, filho do casal, é usuário de drogas e morador de rua. Quando a mais nova nasceu, Suellen recebeu um telefonema de um hospital público dizendo que a recém-nascida havia sido abandonada pela mãe, que a indicou como guardiã legal da criança. A avó, até então, não sabia da gravidez da mulher de seu filho, mas acolheu a neta, como já havia feito anteriormente em três ocasiões. A família é sustentada pelos ganhos de Marcos, que é taxista, e também conta com ajuda do Bolsa Família, no valor mensal de R$35 por criança. Para que seja oferecido o auxílio do governo, é necessária, antes de tudo, a existência de uma família. Sendo assim, com a aprovação desta lei inconstitucional, o futuro de tais núcleos familiares que dependem dessa assistência social seria incerto.

Configurações ainda mais complexas

Diana tem 26 anos. Desde que sua mãe faleceu, há 5, ela é a guardiã legal de sua irmã, que hoje tem 15. O pai delas não quis se responsabilizar pela criação da adolescente e não mantém mais contato com suas filhas.

Thalita é filha de mãe solteira. Quando tinha 1 mês de vida, sua mãe foi trabalhar como empregada doméstica na casa de uma família, onde as duas moraram juntas por 7 anos. Depois disso, a mãe decidiu voltar para sua cidade de origem e acabou deixando a filha para trás, na casa dos ex-patrões. Dalí em diante, Thalita nunca mais conviveu com sua mãe biológica, tendo sido criada exclusivamente pela família que a acolheu. “Eles contam que a primeira palavra que eu disse foi ‘vó’, que era a forma como eu chamava a patroa da minha mãe. Eles são minha família, mas nunca tivemos nenhum vínculo biológico, apenas afetivo. Cresci dentro dessa família, me identifico com ela”, disse.  

As histórias de Diana e Thalita apenas comprovam o quanto são complexas e variadas as formações familiares brasileiras, reforçando ainda mais o caráter excludente e o quanto é equivocado, em diferentes ângulos, o que prega o Estatuto da Família.

Talvez conhecer as famílias de Bárbara, Cláudio, Suellen, Diana e Thalita não seja o bastante para convencer os deputados da bancada religiosa (que hoje compõem uma das formações mais reacionárias já vistas na história de nosso Congresso Nacional) de como é absurda essa restrição de direitos. Porém, não é a eles que nos dirigimos, mas aos que ainda acreditam na defesa do princípio de igualdade, conforme prega a nossa Constituição Federal.

*Os nomes dos membros das entidades familiares aqui expostas foram alterados para preservar a intimidade dos envolvidos.

Por Juliana Meres