A cura do câncer pelo desconhecido

Sem testes clínicos, substância desenvolvida em São Carlos, torna-se esperança para pacientes

Silencioso e devastador, o câncer é uma das principais causas de morte por enfermidade no mundo. Segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA), estima-se que 576 mil novos casos serão diagnosticados no Brasil apenas neste ano. Para 2030, a perspectiva mundial é nada agradável: há previsão de que 21,4 milhões de pessoas sofrerão da doença.

Ainda sem contar com uma solução definitiva para extinção ou controle dos tumores, os pacientes com câncer convivem com a busca por formas auxiliares de tratamento. Além dos procedimentos tradicionais, como intervenções cirúrgicas, quimioterapia e radioterapia, é comum que se tenha contato com métodos alternativos – alguns dos quais não possuem regulamentação ou indicação médica. Tal busca justifica-se pela natureza severa da doença, que costuma tornar seus pacientes mais otimistas e dispostos a buscar novos tratamentos e medicamentos.

Um dos exemplos da referida procura evidenciou-se nos últimos meses. Aquilo que convencionou-se chamar de “droga da USP”, promoveu o deslocamento de centenas de pessoas até o campus de São Carlos, que procuravam pelas cápsulas azuis e brancas distribuídas pela Universidade, novas perspectivas de tratamento e cura. Na prática, a fosfoetanolamina tem agora o desafio de provar sua eficácia como medicamento para combate ao câncer.

A cura do câncer

A fosfoetanolamina é um composto químico orgânico que integra o processo da síntese de lipídios, moléculas que integram a membrana plasmática de diversos mamíferos. De acordo com o professor Roger Chammas, coordenador do Centro de Investigação Translacional em Oncologia, do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, a molécula é capaz de provocar modificações na membrana das mitocôndrias das células tumorais. Tais alterações fazem com que as referidas organelas, pouco ativas até então, voltem a atividade, trazendo uma maior vulnerabilidade às células cancerosas, por “sinalizá-las”. Isso facilita que o sistema imunológico do organismo identifique-as e provoque sua extinção por apoptose (autodestruição celular), impedindo a multiplicação das células cancerígenas e o agravamento do câncer.

A substância teve grande repercussão após os estudos independentes realizados pelo grupo liderado por Gilberto Orivaldo Chierice, professor aposentado do Instituto de Química de São Carlos (IQSC), virem à tona. Desde o início dos anos 90, Chierice e sua equipe desenvolviam a substância e a distribuíam gratuitamente por um longo período a terceiros,

Essa obtenção fácil e direta da droga, além de sua suposta eficácia, popularizou a fosfoetanolamina entre pacientes com câncer. Segundo o pesquisador, a crescente demanda foi responsável pela produção de cerca de 50 mil cápsulas por mês. A substância, no entanto, não possui as regulamentações necessárias para circular como medicamento, por nunca ter sido analisada em estudos clínicos, ou seja, em testes com seres humanos.

A situação foi alterada em junho do ano passado, quando a portaria que determina que a distribuição de substâncias produzidas pela USP só pode ser realizada mediante licenças de órgãos competentes, foi editada. Com isso, buscou-se impedir a distribuição da fosfoetanolamina sintética e quaisquer outras de caráter medicamentoso desenvolvidas no IQSC. Diante da interrupção do fornecimento da substância, muitos pacientes que já a tinham como parte do tratamento ou desejavam utilizá-la, buscaram recursos no Supremo Tribunal Federal (STF), que invalidou a suspensão firmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

Substância milagrosa?
Arte: Leandro Bernardo
Arte: Leandro Bernardo

O professor Roger Chammas classifica a droga como promissora, mas sinaliza que a ideia ainda possui caráter instrumental, pois a ação do medicamento poderia também se estender à células saudáveis, já que tumores possuem biologia igual às demais células do organismo, diferentemente de parasitas, por exemplo.

O não cumprimento dos protocolos clínicos não permite que os relatos de pacientes que digam ter apresentado melhoras com o uso da “fosfo” sejam tomados como verdadeiros, exatamente por conta da atuação do fármaco ser desconhecida e, possivelmente, não ser a única forma de tratamento empregada. “Não se sabe se [o paciente] se sentiu melhor por causa do remédio. Se ele veio a falecer, se foi por causa da toxicidade do fármaco. Não se consegue atribuir o futuro da pessoa ao medicamento”, defende o oncologista.

“Por ignorar a lei, o colega do Instituto de Química feriu muitos preceitos éticos de condição de estudos clínicos e científicos da instituição que por tanto tempo o apoiou. Isso é um erro enorme”, pontua. Para Chammas, o paciente deve ter autonomia de tratamento, mas o ato de colocar alguém em risco, o que é possível sem um trabalho de aconselhamento, fere a ética médica, e é passível de punição.

O papel da USP  Para que a substância possa ser distribuída e seja considerada um medicamento de tratamento clínico, é necessária sua regulamentação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), vinculada ao Ministério da Saúde. Marcelo Proença, professor de direito comercial da Faculdade de Direito da USP (FD), classifica o procedimento como “moroso e rebuscado, dada a necessidade de demonstração da segurança, o que se faz por meio do procedimento de pesquisa clínica”. Após a regulamentação “a produção em larga escala tende a ser transferida à indústria, por meio de contrato de licenciamento”, completa.

Adilson Kleber Ferreira, farmacêutico que conduziu diversos estudos sobre o composto, afirmou ao Jornal do Campus que a indústria farmacêutica seria uma grande parceria na transformação da fosfoetanolamina em medicamento. Até o momento, a produção em larga escala não foi iniciada.

Novos rumos

Na quinta-feira do dia 29 de outubro, o Ministério da Saúde anunciou a criação de um grupo de trabalho que estudará a fosfoetanolamina, realizando estudos necessários para que seus efeitos e possíveis eficiências contra o câncer sejam conhecidos. Nesse mesmo dia, em audiência pública para o debate acerca da substância realizada no Senado Federal, o diretor-presidente da Anvisa comunicou que “se nos forem apresentados [à Agência] todos os estudos necessários, eles serão priorizados em nossa análise. Mas não podemos liberar medicamentos que não passaram por esse crivo”. No dia 3 de novembro, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), anunciou que já existem 6 grupos trabalhando em testes que utilizam a substância.

Por Guilherme Eler e Vitória Batistoti