Aluno da FFLCH dá vida a drag queen

Rita Von Hunty é dona de casa que usa o humor para criticar a sociedade em shows e canal no YouTube

Todos os dias, por volta das 6 da manhã, Guilherme Terreri Pereira, aluno de Letras da USP, acorda e prepara-se para encarar uma longa jornada de trabalho como professor de inglês, que termina geralmente às 17h. Em seguida, ele despe-se da roupagem de docente e assume o perfil de discente, quando vai à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) cursar o 6o. semestre do Bacharelado em Inglês, até às 23h. Essa seria uma rotina comum a muitos estudantes de cursos noturnos da faculdade em questão, não fosse o fato de que, aos fins de semana, Guilherme assume uma terceira persona, a drag queen Rita Von Hunty. Em um sábado à noite, a reportagem do Jornal do Campus (JC) acompanhou as etapas de caracterização da personagem – ou “montagem”, no jargão drag -, processo que durou quase três horas. Durante a transformação de Guilherme em Rita foi possível notar não apenas mudanças físicas, mas também alterações na personalidade do ator, que, de jovem introvertido e discreto, transformou-se em uma mulher de forte presença e humor sagaz.

Foto: Juliana Meres
Foto: Juliana Meres

A paixão pela dramaturgia foi o que incentivou o nascimento de Rita Von Hunty. Aos 25 anos, Guilherme é formado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e trabalhou como ator durante alguns anos antes de ter que se mudar para São Paulo. “Faço teatro desde que eu sou um óvulo, desde o útero da minha mãe”, brinca ele. Em setembro de 2011, após ser diagnosticada com câncer, a mãe de Guilherme precisou mudar-se para a capital paulista, em busca de tratamento. “Larguei toda a minha vida no Rio de Janeiro para vir ficar com ela. Aí, em 2012, minha mãe faleceu, e eu não sabia o que fazer: se voltava, se começava uma vida nova por aqui. Acabei sentindo mais vontade de ficar, para ficar próximo ao meu irmão. Mas o bichinho do teatro, depois que te morde, você nunca mais deixa de lado. Por menos que você queira, uma vez atuante, sempre atuante”, explicou. E foi assim que, no carnaval de 2013, o estudante de Letras decidiu dar vazão à sua veia artística ao ir caracterizado como Rita Von Hunty em uma festa. “E depois fui a uma segunda festa, e nessa recebi um convite para fazer um trabalho em uma terceira. E assim comecei a me profissionalizar”, contou o jovem que, em 2015, após apenas dois anos, já fez shows na maior festa drag de São Paulo e no programa da apresentadora Xuxa Meneghel, na Rede Record, entre outras conquistas grandiosas.

RuPaul’s Drag Race

O reality show comandado pela drag queen mais famosa do mundo, RuPaul, foi uma grande inspiração para Guilherme. Responsável por levar a cultura drag às massas, o programa humaniza tais personagens ao mostrar os indivíduos reais, com biografias muitas vezes dramáticas, que estão por trás delas. No Brasil, o reality se popularizou, em especial, graças ao sucesso do Netflix, que exibe quase todas as temporadas. Somente neste ano, o país já sediou 57 festas que contaram com a presença de drag queens reveladas ao grande público pelo programa. Alaska, Latrice Royale, Adore Delano, Sharon Needles, Bianca Del Rio e Willam foram algumas das estrelas que se apresentaram por aqui.

Um dos pontos mais altos da carreira de Rita Von Hunty foi a abertura do show de Willam em São Paulo, em setembro. No dia 5 de novembro, no entanto, ela alçará um voo mais alto ao se apresentar antes do show que Jinkx Monsoon, vencedora da 5a temporada e queridinha dos fãs de RuPaul, fará no Rio de Janeiro.

“Eu já estava querendo me montar há algum tempo por causa do seriado do RuPaul, já estava bem animado”, disse Guilherme, ao recordar-se da época em que começou a vestir-se como Rita, quando nem sonhava em fazer performances no mesmo palco que abrigaria as drag queens que ele admirava no programa que o incentivou.

Carmen Carrera, uma participante da 3a temporada do reality de RuPaul que descobriu-se mulher transgênero, é citada como uma grande inspiração inicial para a composição de Rita: “Me apaixonei por drag por causa da Carmen Carrera, porque eu via ela no RuPaul e pensava: ‘Não, você não é um menino’. E não era mesmo, ela é uma mulher, sempre foi e entendeu que era através da drag. E esse foi o meu primeiro contato de admiração artística com a drag: ver um homem que estava tão bem caracterizado, e não estou falando de caracterização de adereço, estou falando de viver mesmo, da verdade cênica, de Stanislavski, de teatro bem feito”.

Foto: Juliana Meres
Foto: Juliana Meres
Referências

Muitas outras mulheres notórias serviram como referências para a criação de Rita Von Hunty. A personagem é uma dona de casa vintage, com visual inspirado no de grandes atrizes da Hollywood antiga. Nas paredes do quarto de Guilherme vemos algumas menções: há pôsteres de Carmen Miranda e Marilyn Monroe. Em outros cômodos da casa há imagens de pin-ups como decoração. “Adoro esse cenário imagético dos anos 40, 50, 60”, explica ele. O nome de sua drag presta homenagens à atriz Rita Hayworth e à dançarina burlesca Dita Von Teese. Jean Harlow, Joan Crawford e Sophia Loren são outras atrizes que o ator, estudante e professor cita como inspirações.

“Eu sempre gostei de coisas velhas, música, filme, comida, sempre tive uma alma meio de velho. E eu trouxe essa herança do Guilherme para a Rita”, diz ele. Mas há ainda aquelas referências que são da ordem do inconsciente, da formação cultural que está impregnada na mente do ator e acaba transparecendo quase que de maneira autônoma. “Eu adoro a Betty Boop, o jeito como ela se mexe, ela está sempre triste, é estonteantemente bonita, mas não gosta de ser bonita. Ela é uma estrela de cinema, e o sonho dela é ser babá. Acho que a Rita tem um pouco disso”, comenta. “E quando vejo fotos da minha mãe e da minha avó, vejo que tem muito delas na Rita. Minha mãe tinha um humor muito mordaz, um sarcasmo afiadíssimo, uma ironia. E minha vó tinha essa coisa de estar sempre impecável, não saía de casa se não estivesse com o cabelo e a maquiagem perfeitos, ela foi miss. Eu cresci com essas duas mulheres, então tive esses dois pólos dos quais tirar informações, referências”, conta.

Humor político

O sarcasmo, característica herdada da mãe de Guilherme, é o traço mais marcante da personalidade de Rita. Após finalizar sua transformação, a drag queen olha para a repórter do JC e diz: “Você é da USP? Achei que tivesse posses. Se soubesse que era de universidade pública nem deixava entrar”, levando todos os presentes às risadas. Ao enfrentar dificuldades para vestir suas roupas, disparou: “É por isso que no passado existiam mucamas para fazer isso”. A paródia escrachada do comportamento das elites conservadoras – sempre feita na voz de Rita, nunca de Guilherme – é evidente em diversas outras ocasiões ao longo da entrevista. “Esse humor mordaz, que machuca, me interessa muito. O Gil Vicente falava que através do riso se critica a moral, se criticam os costumes. E eu sempre achei que ele estava muito certo, que o riso é uma arma política fortíssima”, disse o estudante de Letras.

Tempero Drag

Além de se apresentar em festas, Rita também comanda um programa de culinária vegana exibido no YouTube. O canal do “Tempero Drag” foi lançado em abril de 2015 e possui quase 7 mil inscritos. Certa vez, em uma festa, Rita foi abordada por funcionários de uma produtora de vídeos, que se disseram interessados em lançar um programa estrelado pela drag queen na internet. E ela respondeu, com seu sotaque característico de dona de casa recatada: “Só se for um programa de culinária”. “E eles amaram, começaram a dar risada, e aí começou a vir a Julia Child, a Palmirinha, e começamos a pensar: e se existisse uma drag fazendo isso?”, conta Guilherme, citando outras referências que o ajudam a compor o lado dona de casa de Rita. O ator fez questão de inserir seu humor crítico também no canal de culinária: “Ela é uma cozinheira completamente politicamente incorreta, do tipo ‘salvem os bichinhos, protejam as baleias, mas da empregada pode judiar'”.

O programa é feito de maneira improvisada e quase sempre conta com a presença de uma drag queen como convidada especial que auxilia Rita na produção das receitas, ao mesmo tempo em que é entrevistada, em tom de zombaria, por ela. “Eles ligam a câmera e falam: ‘Se vira!’. E eu adoro porque trabalhei por muito tempo com improviso no teatro, então para mim flui”, explica. Alguns episódios já tiveram mais de 20 mil visualizações. “Para apenas um moleque de peruca falando na frente da câmera, é muita coisa”, brinca Guilherme. O jovem ator se diz satisfeito com a repercussão que o programa tem tido até então, porém almeja ir mais longe. “Queremos que o GNT contrate o ‘Tempero Drag’ no lugar da Bela Gil”, disse Rita.

Foto: Juliana Meres
Foto: Juliana Meres
Vida universitária

As leituras e reflexões a que Guilherme está exposto na faculdade, segundo ele, são úteis não apenas para o seu desenvolvimento enquanto professor, mas também acabam nutrindo a criação de sua personagem. Como Rita, ele procura problematizar questões ligadas a política, comportamento, gênero, sociedade, cultura hegemônica: temas com os quais lida na vida universitária. “É muito difícil se dissociar do que fica arraigado em você. Fazer uma faculdade engendra, muda o seu jeito de pensar. Tive acesso ao Foucault através da faculdade, não conhecia antes. Tive acesso ao Adorno, ao Durkheim. Leio bastante Raymond Williams, Terry Eagleton. Bebo muito da USP, alguns professores são muito iluminados, a Maria Elisa Cevasco, o Marcos Soares, a Maria Silvia Betti”, comenta.

 

Ele também conta que já houve ocasiões em que foi tratado como uma celebridade por colegas da faculdade: “Às vezes alguém na Letras, na Filosofia, ou na História vem pedir para tirar foto. É muito maluco, eu fico pensando: o que essa pessoa vai fazer com uma foto minha? De menino? Se eu ainda estivesse de Rita. Mas eu adoro, é um reconhecimento que mostra que eu estou em caminho bacana, fazendo um trabalho que toca as pessoas, que gera esse apreço. Sou muito grato por poder tocar as pessoas onde é sensível para elas.”

Futuro

Apesar de toda a atenção que tem despertado, Guilherme diz não ter grandes planos para o futuro, apenas sonhos. Ele afirma que pretende continuar conciliando as carreiras de professor e drag queen – já que esses são dois projetos sem os quais o jovem não vê sua vida. Mas destaca que ser drag é muito cansativo: além de perder horas se “montando”; coreografando shows; buscando figurinos, ele também é forçado a estar sempre de bom humor. “Me incomoda muito ter que estar feliz o tempo todo”, revela.

Porém, os sonhos que Guilherme diz possuir demonstram que ele ainda terá, por muito tempo, seu destino ligado ao de Rita Von Hunty: “Quero fazer show na Blue Space toda semana, estar na Xuxa toda semana, quero substituir a Bela Gil. Quero que as pessoas me vejam como a nova Palmirinha. Tenho muitos sonhos. Nenhum deles é ‘pé no chão’, mas, se for pra ter sonho ‘pé no chão’, eu compro sonho de padaria, né?”.

Por Juliana Meres