Aos abusos sexuais, silêncio

Silêncio sobre estupros na Medicina aponta despreparo da USP em lidar com a violência contra a mulher
Foto: Barbara Monfrinato
Foto: Barbara Monfrinato

“Venho por meio desta informar um novo ataque que sofri essa semana. Ano passado fui perseguida, ameaçada e sofri uma brutal tentativa de estupro na Universidade de São Paulo”. Assim uma estudante de Geografia começa a postagem que já ultrapassa 20 mil curtidas e 7 mil compartilhamentos no Facebook, desde sua publicação, no dia 28 de outubro.

O relato é um apelo por proteção. De março a agosto de 2014, Luísa Cruz recebeu bilhetes anônimos e chegou a sofrer uma tentativa de estupro, no estacionamento da FAU. Depois de um ano, em meados de outubro, Luísa voltou a ser perseguida: sua conta de email pessoal foi invadida de um dos computadores da Sala Pró-Aluno da Geografia (FFLCH). Receosa, ela não frequenta mais as aulas e se abriga na casa de pessoas próximas. No último dia 3, ela relatou ter recebido um bilhete anônimo, dessa vez na nova casa em que estava.

Antes da repercussão do caso, a estudante conta que não havia recebido apoio da USP ou da Polícia, que alegavam não poder abrir investigações, já que não havia um suspeito. “O que se faz geralmente é prezar mais pela reputação do que pela integridade das vitimas”, disse, ao Jornal do Campus.

A USP realizou uma reunião com a estudante nesta quarta-feira, 4 de novembro, em que estiveram presentes o presidente da Comissão de Direitos Humanos, José Gregori, a Ouvidora Geral, Maria Hermínia Tavares de Almeida, e o superintendente de Prevenção e Proteção Universitária, José Antonio Visintin. A Universidade afirma que irá colaborar com as investigações policiais, que se iniciaram no mesmo dia. “No que tange a luta pela permanência das mulheres assediadas, ameaçadas e agredidas na universidade, ainda há muito a ser conquistado”, escreveu Luísa em um novo post.

Denúncias de estupros envolvendo estudantes na USP começaram a vir à tona em 2013 junto a demais abusos em trotes, principalmente na Faculdade de Medicina (FM). Segundo pesquisa realizada no mesmo ano, 43% dos alunos de Medicina confessaram já ter sofrido assédio ou violência sexual na faculdade. O estudo foi coordenado pela professora Maria Fernanda Tourinho Peres e levou em conta respostas de 317 alunos, cerca de 30% do total.

Até hoje, apenas um aluno da USP sofreu punição: acusado de estupros e demais infrações disciplinares, o estudante da Faculdade de Medicina foi suspenso em abril de 2015 por 180 dias e, em setembro, recebeu nova suspensão de um ano. A USP não possui o poder de investigar ou processar judicialmente, mas sim de abrir sindicâncias que podem resultar em processos disciplinares e administrativos, com medidas como a expulsão do aluno agressor. A sindicância em questão aguarda resolução do processo criminal, que é sigiloso e está em andamento no Ministério Público Estadual (MPE). A USP, a FM e a defesa do acusado foram procurados pelo Jornal do Campus, mas não quiseram comentar o caso.

Em agosto deste ano, o Show Medicina, tradicional evento dos estudantes do curso, foi suspenso a pedidos do MPE, que afirmava que a FM não coibia adequadamente os abusos – como, por exemplo, a separação das mulheres, que só podem participar da parte da costura. Apesar da proibição, o evento aconteceu em outubro, num espaço fora da faculdade – situação descrita pelos organizadores como “exílio”.

Investigações

As denúncias sensibilizaram em 2014 a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), então presidida por Adriano Diogo (PT). O ex-deputado conta que houve pressão da diretoria da FM para que não fossem realizadas as primeiras audiências públicas, em novembro, envolvendo casos de trotes e abuso sexual na unidade.

Uma CPI foi instaurada em dezembro do mesmo ano com o objetivo de investigar violações de direitos humanos nas universidades paulistas. Foram ouvidas mais de 200 pessoas e apurados casos ocorridos em faculdades como a Faculdade de Medicina, Esalq, Unicamp e PUC Sorocaba. Os relatos vão desde hinos racistas até abusos corporais, psicológicos e sexuais.

Com fim em março de 2015, o relatório final da CPI determinava 39 recomendações, que não foram levadas adiante pela FM, e responsabilizava as universidades, as entidades promotoras de festas e os agressores pelos crimes. O documento propunha ainda a criação de uma Ouvidoria Estudantil estadual para atender os casos de assédio sexual, moral e profissional; além de dois projetos de lei: um que proíbe o patrocínio de festas estudantis por fabricantes de bebida alcoólica e outra que cria um cadastro universitário único para relatar o envolvimento de estudantes em trotes. Para Adriano Diogo, presidente da CPI, o principal avanço das audiências foi “desnudar barbaridades que acontecem nas melhores universidades do país, e são abafadas”.

Além do caso do estudante suspenso, o MPE confirmou ao JC um processo criminal por estupro, em curso na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. O MPE ainda não confirmou outros processos de violência sexual ligados à USP, até a finalização da reportagem.

Box CPI estupros

“Cultura de silêncio”

Procurada pelo Jornal do Campus, a Faculdade de Medicina não deu resposta sobre os casos noticiados ou os mecanismos institucionais existentes de acolhimento. Os dados também não são claros: a FM não informou quantas denúncias já foram recebidas, mas alunos e professores contaram ao JC que existem algumas sindicâncias em andamento e outras já foram fechadas, sem que houvesse punição. A Atlética e o Centro Acadêmico da faculdade não responderam até o fechamento da edição.

A situação é marcada por uma “cultura de silêncio gravíssima” que atinge boa parte dos alunos, nas palavras da médica Maria Ivete Castro Boulos, coordenadora do Núcleo de Atendimento a Vítimas de Violência Sexual (NAVIS) do Hospital das Clínicas. “Teve gente que viu uma menina ser carregada por quatro, mas aí ‘ninguém viu’, entendeu?”, diz. Para não “sujar a imagem” de alguma pessoa ou instituição, muitos se calam.

O NAVIS funciona 24 horas por dia, há 15 anos, e tem uma equipe multiprofissional para atender vítimas de violência sexual, inclusive alunas da USP. Durante a CPI, foi veiculado que teriam ocorrido 112 estupros na Medicina nos últimos dez anos, número supostamente atribuído a um trabalho de Ivete. A médica diz que essa contagem não existe. “Eu jamais daria número de quantas alunas eu atendi. Acho que isso faz parte da relação médico-paciente”, justifica.

O silêncio afeta também as vítimas: temendo se expor e ter seu nome em fofocas ou, em alguns casos, pichações nas paredes, muitas não fazem denúncias ou acabam nem mesmo contando a pessoas próximas. Algumas chegaram a pedir orientações a Ivete somente por telefone. “A violência sexual deixa a pessoa envergonhada, se sentindo ameaçada. Se não for orientada, pode assumir repercussões devastadoras”, observa a médica.

Uma das medidas tomadas pela FM foi proibir as festas e o consumo de álcool nas dependências da faculdade. Para Ana Cunha, integrante do coletivo feminista Geni, isso deixa os alunos mais vulneráveis em festas fora do campus e responsabiliza o evento pelos estupros, ao invés dos agressores. Ivete Boulos afirma que “o álcool não é a droga da violência sexual. Existe uma questão de gênero fortíssima relacionada a isso”.

Os casos são muitas vezes acolhidos em coletivos, como o NEGSS (LGBT) e o Geni, que surgiu em 2013 para dar apoio as denúncias feitas por alunas de Medicina. Ana conta que o coletivo anunciou 12 denúncias de estupros ocorridos desde 2010, mas destaca que as integrantes recebem outros casos em que a vítima pede sigilo. Desde seu início, o Geni recebe reações negativas de alunos. Segundo a estudante, que já sofreu assédio numa festa e depôs na CPI, a hostilidade piorou após as audiências: integrantes foram ameaçadas e xingadas em redes sociais. Felipe Scalisa, do NEGSS, foi citado nas duas últimas edições do Show Medicina, num quadro que ridicularizava seus trejeitos e sua militância.

É difícil até mesmo para os coletivos ter acesso ao desenrolar das sindicâncias, que são sigilosas. “Dizem que o sigilo é para proteger a vítimas, mas na verdade é para proteger os agressores de difamações contra as quais eu não fui protegido, por exemplo”, acredita Felipe.

“Esses estupros fazem parte de uma cultura permissiva e inclusive estimuladora de assédio sexual a mulheres na faculdade”, diz Ana, citando hinos cantados em competições, jornais que divulgavam intimidades sexuais de alunas e a própria estrutura do trabalho no Show Medicina. Ivete Boulos, por outro lado, não acredita que essa cultura seja exclusiva da Medicina, mas destaca o caráter simbólico e irônico da situação. “Talvez aqui o impacto seja pior quando você pensa que vão ser médicos. Que confiança os pacientes vão ter?”

Órgãos institucionais

Foram criadas uma Ouvidoria e um Núcleo de Estudos e Ações de Direitos Humanos (NEADH) na FM. Também aconteceram fóruns para discutir o consumo de álcool e a violência sexual. No âmbito da USP, foi instituído o programa USP Mulheres e houve adesão ao movimento HeForShe, da ONU, que prevê uma linha de pesquisa a ser desenvolvida sobre assédio e violência no campus. Existe o programa SOS Mulher, ligado à Superintendência de Assistência Social (SAS), desde 2005.

O Jornal do Campus solicitou dados à Universidade. Até o fechamento da edição, a assessoria da USP informou que a Comissão de Direitos Humanos havia recebido apenas 3 denúncias de violência sexual em 2014. A Ouvidoria Geral registrou 12 denúncias entre 2012 e 2015, das quais apenas 5 geraram sindicância: “não foi possível instaurar sindicância quando as denúncias foram vagas”, alegou. Três dos casos consistem em rapazes que se consideraram injustamente acusados de violência sexual. O SOS Mulher tem “uma média de atendimento anual” de 7 casos de violência contra a mulher; desde 2011, consta o incrível número de apenas 2 casos de estupro.

Os caminhos para denunciar não são claros. Segundo comunicado da Reitoria divulgado em dezembro de 2014, foi nomeada uma nova Comissão de Direitos Humanos, onde estariam centralizadas as denúncias de violações dos direitos humanos, com apoio de outras instâncias da Universidade. No site do USP Diversidade, é indicado que a vítima escreva para a diretoria da unidade, denuncie junto à Ouvidoria e comunique a Guarda Universitária. A estudante Luísa Cruz acabou recorrendo a todos esses meios e à Superintendência de Segurança. “A USP é muito grande e precisa ter um canal centralizado para receber essas denúncias”, opina Heloísa Buarque de Almeida, professora de antropologia na FFLCH, especialista em questões de gênero e ex-coordenadora do programa USP Diversidade (2014-2015).

A pesquisadora também diz ser necessária uma pesquisa para mapear os casos na USP. Heloísa faz parte da Rede Não Cala (antiga Quem Cala Consente), criada de modo autônomo em 2015, com cerca de 200 assinaturas de professoras da Universidade. A Rede busca apoiar as alunas vítimas de violência sexual no campus. “As universidades brasileiras não sabem lidar com isso. É um problema da sociedade, a ideia de que o homem tem um comportamento sexual incontrolável e a mulher deve ser submissa”, explica.

Para Ana Flávia Oliveira, docente da FMUSP, os mecanismos de acolhimento na USP ainda são incipientes. “Ainda falta muito trabalho para a construção de uma política que alie educação e mudança cultural, acolhimento às vítimas e responsabilização dos agressores”, afirma.

Por Barbara Monfrinato