Resistência e luta pela educação pública

Repórter adentrou a ocupação do movimento secundarista na Escola Estadual Fernão Dias Paes

Após uma conversa malograda com o Secretário de Educação do Estado de São Paulo, Herman Voorwald, no início de outubro, estudantes secundaristas foram às ruas contra o processo de reorganização das escolas estaduais. Com a medida do governo, decidiu-se que 94 escolas seriam fechadas, e alunos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio de outros colégios também teriam que ser remanejados. “Os alunos têm que fazer parte desse processo. No entanto, só nos procuraram para informar a decisão, não para fazer parte disso”, questiona Heudes Cássio Oliveira, 18, um dos porta-vozes do movimento e estudante do terceiro colegial da Escola Estadual Fernão Dias Paes.

Terça-feira, 10 de novembro

No décimo dia de novembro, Heudes percorre o mesmo caminho de sempre em direção ao seu colégio. A aula do dia, porém, inicia-se de maneira diferente: por volta das 5 horas da manhã, um grupo de alunos entra na escola e impede a entrada de coordenadores, funcionários e professores. Depois da realização de uma assembleia estudantil,  os alunos decidem que a escola do bairro de Pinheiros seria a segunda escola paulista a ser ocupada. A Polícia Militar, em menos de uma hora, recebe um chamado 190, com uma denúncia de “tumulto na região”. A partir desse momento, um cenário que se repetiria por mais de 70 horas se estabelece: do lado de dentro da escola, dezenas de alunos são cercados por um cordão de isolamento, uma fileira de centenas de policiais e um grupo de manifestantes, apoiadores da causa.

Cerco de policiais ao redor do perímetro da E.E. Fernão Dias
Cerco de policiais ao redor do perímetro da E.E. Fernão Dias
Quarta-feira, 11 de novembro

O número de policiais impressiona: apenas na fachada do Fernão Dias, há cerca de 100 homens fardados. Por algumas horas, a tropa de choque da polícia também marca presença. O perímetro inteiro do espaço escolar é isolado, e os adolescentes que optam por deixar a ocupação precisam dar o nome e o número de identidade para uma representante do Conselho Tutelar. O sargento Belmiro, que está em seu segundo dia de trabalho na calçada da avenida Pedroso de Moraes, diz que a Polícia Militar permanecerá no local até que os alunos deixem a escola, mas afirma que não sabe quando isso acontecerá: “não tem previsão para acabar”.

Quinta-feira, 12 de novembro

Por volta das 8h30, três alunos começam a varrer o chão do pátio do colégio. Os estudantes estão em assembleia, e há um grupo de manifestantes incentivando o movimento por meio de gritos, um surdo e duas caixas. Embora estejam cansados, os apoiadores recebem a ajuda de pessoas como Márcia Camargos, moradora da rua ao lado do Fernão. A vizinha abriu sua casa para os apoiadores irem ao banheiro e utilizarem a conexão de internet sem fio. Carmargos e uma amiga chegam ao terceiro dia de manifestação com duas sacolas de feira cheias de pastéis: “Isso [os pastéis] é para ajudar na resistência deles”. Ao fim da assembleia, os alunos de dentro da escola saem segurando uma faixa vermelha – em que se lê: “Hoje a aula é na rua” – e informam que não há trégua. A Secretaria de Educação, durante a manhã, faz uma proposta para os meninos deixarem a ocupação e irem, em um ônibus Volkswagen Mascarello, até uma reunião com o secretário. O convite foi declinado: “Só vamos sair quando nossa demanda [a barração da reorganização] for atendida. Se o secretário quiser diálogo, ele vem aqui”, informam os estudantes, dando sinais de que sua saída do prédio depende do atendimento à sua demanda.

Gabriel, do 3o ano do Ensino Médio, foi um dos alunos que ocupou a escola na terça-feira, mas teve de deixar o edifício no mesmo dia: “Na quarta-feira, era aniversário da minha vó. Os policiais anotaram o meu RG e eu saí. Os alunos que estão dentro estão morrendo de medo de alguma ação policial, porque os caras [policiais] não têm dó. Temos medo deles entrarem, depredarem e falarem que foi a gente. Mas, lá dentro, o pessoal está organizado”. No mesmo horário em que o jovem saiu, Daniele, do 2o ano do Ensino Médio, também abandonou a ocupação. Nesta quarta-feira, ela se juntou à manifestação do lado de fora: “Cheguei aqui às 6h50. Não sei até que horas eu vou ficar aqui. Quanto mais a gente persistir, melhor”. Luana, também do 2o ano, entrou na escola nos três dias: “No segundo dia, após ter saído, falei para os meninos que estão lá dentro abrirem a porta do fundo – porque aquela parte do isolamento estava sem PM na hora – então entrei em dois segundos. No terceiro dia, pulei o muro às 5h30. Agora, estou aqui fora, porque tive que sair para cuidar da minha mãe, que está operada. Mas vou ficar aqui pelo tempo que for necessário”.

Alunos manifestando em frente à escola ocupada
Alunos manifestando em frente à escola ocupada
Sexta-feira, 13 de novembro

O número de alunos do lado de dentro e do lado de fora da ocupação é um pouco menor. Natalia, do 1o ano do Ensino Médio, havia entrado no ambiente pela segunda vez na quinta-feira, aproveitando o horário das 5 horas da manhã, quando havia poucos policiais rondando a escola. No início da tarde, alguns alunos deixaram a ocupação para uma conversa  na Secretaria de Educação, com o responsável pela pasta, no centro da cidade de São Paulo. Como não houve acordo entre estudantes e o governo, uma liminar que exigia a reintegração de posse em 24 horas passou a valer. A apreensão, aos poucos, foi aumentando. “Filha, cuidado, os policiais são agressivos”, alertavam os pais de um aluna. Os pais presentes nos arredores da escola, em sua grande maioria, apoiavam a atitude dos filhos.  A mãe A., cujo filho de 16 anos é um dos que estão ocupando a escola, tem orgulho da atitude dos garotos: “Eles têm uma convicção, que é de lutar pela escola pública. E eu estou totalmente de acordo com essa luta. É uma luta muito digna, muito coerente, muito necessária. Fico aliviada por ter criado um filho que ainda se indigna”.

Pouco após às 20 horas, a liminar da reintegração de posse é derrubada. Irritados e debaixo de forte chuva, a maior parte dos policiais deixa o local, restando apenas uma única viatura no quarteirão. Assim, outros alunos sobem a grade e entram na ocupação. Em reunião, os estudantes deixam que alunos de outras escolas estaduais também entrem. Há uma preocupação em manter o movimento unido e organizado, e os profissionais de imprensa são autorizados a realizar sua cobertura somente atrás dos muros do Fernão.

Às 23 horas, os alunos decidem em assembleia que o Jornal do Campus poderia  a entrar na ocupação, desde que acompanhado de perto por Igor Miranda, aluno do 2 o. ano do Fernão e um dos “seguranças” do grupo. O ambiente da escola da zona oeste é de colaboração e força. Os estudantes são divididos em três grupos principais: cozinha, limpeza e segurança. O cardápio – que chegou a ser somente macarrão nas primeiras horas – apresentava arroz, feijão e salada no almoço desta sexta-feira. Os estudantes, sempre que conversam com quem está do lado de fora, ressaltam que há alimentos suficientes dentro do colégio. A comissão de alimentação, de quebra, recebeu a doação de algumas caixas de pizza, que foram entregues para os secundaristas. Os meninos tomam banho no único chuveiro, gelado, instalado por eles mesmos no banheiro do ginásio do Fernão. As meninas utilizam o sanitário da entrada, ao lado da sala da coordenação. Quando encontram tempo, os alunos jogam um pouco de futebol ou escutam a canção de rap que toca na caixa de som. Ao digitar a senha “119BFDDB”, os alunos conseguem utilizar a rede wi-fi do colégio, que se mostra útil para a divulgação da luta dos estudantes. Além de postarem vídeos do local, os ocupantes da escola têm a possibilidade de acompanhar as outras ocupações. No momento, já são ao menos 43 escolas tomadas por secundaristas. “A ocupação do Fernão pode ter sido a faísca para o movimento”, diz Miranda, que aproveitou a noite para ligar para os pais.

Trecho de poema de Bertold Brecht (Antologia Poética, 1977) escrito na lousa da sala de aula da E.E. Fernão Dias (Foto: Vinícius Andrade)
Trecho de poema de Bertold Brecht (Antologia Poética, 1977) escrito na lousa da sala de aula da E.E. Fernão Dias (Foto: Vinícius Andrade)
Sábado, 14 de novembro

Algumas roupas são estendidas pelos arredores da escola, já que choveu muito no dia anterior. Os alunos responsáveis pela faxina varrem a entrada da escola, em que a estátua em homenagem ao bandeirante Fernão Dias foi encapuzada por um saco de lixo preto. O Jornal do Campus não identificou nenhum objeto ou instalação do local danificados pela ocupação.

Na entrada, dois meninos continuam controlando a entrada e a saída do prédio por meio de um caderno espiral. Para o almoço de sábado, cerca de 8 adolescentes já preparam o cardápio, que contém arroz, feijão, alface e carne com batata. Os meninos, ao menos, passaram bem a última noite: com a ajuda de colchonetes do ginásio de esportes da escola, não houve a necessidade de se dormir em bancos ou em outras superfícies pouco confortáveis. O setor de limpeza, dentro de uma sala de aula, se reunia para a distribuição das tarefas do dia, que ainda contaria com um sarau na parte da tarde.

Até o fechamento desta reportagem, a o Sindicato dos Professores (APEOESP) informava que 48 escolas do estado de São Paulo eram ocupadas. O governo indicava que a E. E. Fernão Dias e outros 42 colégios permaneciam tomados pelo movimento estudantil secundarista.