O desafio de se colocar no lugar do outro

Pesquisadora Adriana De Simone fala sobre empatia e o fenômeno da “indignação seletiva”
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Foto: Giovanna Chencci

O mês de novembro foi marcado por tragédias que desencadearam grandes discussões nas redes sociais brasileiras. Uma delas, o maior desastre ambiental já registrado no país, ocorrido na cidade de Mariana, Minas Gerais, e a outra,  os atentados terroristas em Paris,  coordenados pelo Estado Islâmico e considerados os piores da história da França desde a Segunda Guerra Mundial, deixando 129 mortos.

As massivas coberturas e manifestações de solidariedade sobre o caso da capital francesa levantaram o debate entre os usuários sobre o diferente grau de identificação e compadecimento das população com os dois acontecimentos. Isso pode ser observado, por exemplo, em notícia do portal de notícias G1, sobre a possibilidade de alterar a foto de perfil no Facebook em apoio ao pior atentado da história da França, quatro dos cinco comentários com maior número de curtidas citavam Mariana.

Para entender a polêmica e a atuação da empatia nessas situações, – e na sociedade como um todo – o Jornal do Campus entrevistou a pesquisadora Adriana De Simone. Autora de tese defendida na USP sobre as diversas faces da empatia, Adriana foi professora universitária no Complexo Educacional FMU, além de realizar consultas há mais de 15 anos.

Podemos estabelecer um conceito básico de empatia?
Em termos gerais, é a capacidade que o ser humano tem de ser afetado pelo outro. É algo que faz parte da nossa constituição.

O que faz com que certas pessoas se identifiquem com certas situações e outras não?
Essa nossa capacidade de se colocar no lugar do outro, vai depender da construção da nossa identidade, que é aquilo com que eu me identifico. Então é mais fácil e mais natural que sintamos as emoções das narrativas se conseguimos nos projetar naquele lugar. É muito difícil se colocar no lugar de uma coisa que você acha que não poderia viver. Então normalmente o campo das identificações vai falar mais próximo daquilo que é a sua experiência. Isso [identificação diferenciada para certos tipos de tragédia] não acontece por a pessoa ser “ruim”.

Mas acontece uma rotulação, como aconteceu com a discussão sobre as tragédias de Paris e de Mariana.
Sim, uma coisa muito comum é cair num julgamento de valor. Por exemplo: existem as pessoas que se identificam mais com os atentados em Paris e outras mais com o sofrimento dos moradores de Mariana. Então aquelas que estariam mais atentas ao caso de Mariana seriam “melhores” do que as que deram mais atenção para Paris.

Então não existe uma diferença caso ocorra uma identificação maior como, por exemplo, com a tragédia de Paris do que a de Mariana? É uma questão de vivência?
Se formos tratar do indivíduo, a gente tá tratando de vivências diferentes. Se a pessoa “sente mais” determinada situação, é porque está conseguindo se inserir mais naquela narrativa.

Supondo que essa vivência fosse pequena ou não existisse: caso fosse necessário, a empatia poderia ser estimulada? Como?
Por incrível que pareça, o sofrimento é um meio para que se passe a ser afetado de uma forma que você nunca foi. Ele te leva a perceber o quanto você está sujeito, o quanto você é vulnerável em relação às situações, às pessoas, à sociedade. Ninguém vive de uma forma independente do entorno.

Sobre criar um estímulo, se discutiu muito também a participação da mídia na criação e até mesmo manipulação dessa empatia, criando o fenômeno da “indignação seletiva”, onde apenas certos tipos de situação comovem. De que maneira os meios de comunicação teriam influência nessa decisão?
A mídia tem um papel fundamental em relação à empatia porque ela vai criar o que chamamos de opinião pública. Os meios de comunicação ocupam o espaço do pensamento. O que se espera é que o jornalismo produza bons pensamentos, que permitam que o leitor não seja um mero consumidor de mercadoria, mas que tenha um olhar crítico. Isso só é possível se colocarmos as pessoas para pensar, mas a mídia brasileira não faz isso, ela cria movimentos de massa.

A movimentação das pessoas na internet e, principalmente nas redes sociais, pode ser considerada um contraponto a esse comportamento da mídia?
As redes sociais estão funcionando bem, a partir do meu ponto de vista, para a criação de um pensamento mais crítico. Como por exemplo no caso de Paris versus Mariana. Nós temos pessoas que se identificam mais com uma situação e menos com outra, mas quando são apontadas pra aquilo que não estão se identificando, elas vão atrás daquilo, entram no site, veem as fotos e passam a estar por dentro da situação.

Então esse movimento de ‘atrito’ entre as tragédias seria positivo pra estimular a empatia para certos assuntos?
Isso acaba divulgando mais informação, mostrando o outro lado da história.  Porque às vezes não é que a pessoa não criou empatia, ela nem entrou em contato com a situação, ela nem sabe. Eu acho que as redes sociais divulgam outras informações, que não passam pelo filtro dos grandes meios de comunicação. O que aparece no jornal muitas vezes são os mesmos assuntos, repetidos várias vezes. Às vezes assuntos não importantes são muito explorados e assuntos que são importantes pra sociedade, que isso tem que ser dito, vão pro espaço. É importante que as redes sociais funcionem como debate, como troca de ponta de vista, ainda que gerem certo atrito.

Está faltando empatia na sociedade? Por que isso acontece?
Sim. A nossa sensibilidade está ficando cada vez mais rude. Estamos vivendo uma sociedade extremamente consumista, cada vez mais tecnológica. Temos a sensação de estar em contato com o outro por meio de um aparelho, quando na verdade poder olhar, conversar, trocar, isso é de fato uma troca afetiva.

Então, se continuarmos assim, no futuro as pessoas terão menos empatia?
Eu acho que estamos indo por um caminho muito grave. Existe o lado benéfico das redes sociais na medida que você cria pensamentos, desenvolve. Deveria ser esse o curso do uso da rede social, repensar os julgamentos que emitimos. Mas o complicado do uso da tecnologia, no nosso dia a dia, é que estamos perdendo a troca.

Quais são as consequências?
Não criar vínculos vai gerando um mal estar na sociedade, porque o ser humano não consegue viver só dessa experiência, ele precisa do real, ele precisa da troca afetiva, ele `precisa se sentir pertencente ao grupo. As pessoas cada vez mais individualistas, se importando menos umas com as outras, cada vez mais frias, e com uma coisa muito grave, que é a perda da sensibilidade. Sensibilidade é exercício, é igual ginástica: não temos se não exercitarmos.

Haveria alguma solução?
Eu acho que a resposta seria termos uma experiência com a arte, que é libertadora desse uso que fazemos da tecnologia. Em todos os sentidos: dança, música, pintura, expressão corporal.

Por que a recuperação da empatia poderia ser feita através da arte?
A arte fala dessa capacidade de ser completamente tocado por algo. Você perde as fronteiras entre si próprio e seu objeto de apreciação. À medida em que isso é desenvolvido, ficamos mais sensíveis também às relações pessoais. O pragmatismo acaba com a sensibilidade, porque o campo do sentir, do viver, do ser afetado, ele não tem um pra quê, é o simplesmente estar vivo, é a troca por si só, é o prazer de ser, é o prazer de estar, é o prazer de viver. Não tem um objetivo final. As relações devem ter um objetivo em si mesma, ou seja, o objetivo é a troca em si, é o estar junto.

Por Beatriz Quesada