Intolerância domina o debate político

O professor Gustavo Dainezi fala sobre o sentimento de ódio difundido através das redes sociais

No dia 30 de março, em Porto Alegre, uma pediatra negou atender a uma consulta do filho de uma filiada ao Partido dos Trabalhadores. O motivo teria sido a divergência política. O comportamento da doutora foi aprovado pelo presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul e por tantos outros médicos que se pronunciaram pelas redes sociais.

Em 4 de abril, a advogada e professora Janaína Paschoal fez um pronunciamento em frente à Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, defendendo o pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Seu desempenho e sua fala inflamada viraram piada nas plataformas em rede no dia seguinte. Pessoas, munidas de ódio, tentaram humilhar e desmoralizar a figura da mulher.

Por outro lado, no dia 7 de abril, o Governo Federal lançou o site Humaniza Redes, como ouvidoria para receber denúncias de violações aos Direitos Humanos que acontecem on-line.

A Constituição brasileira de 1988 garante a igualdade dos indivíduos perante a lei e a proteção legal contra o preconceito. Configura-se como crime o racismo, a homofobia, a intolerância religiosa, entre outras formas de proteção  às vítimas de discriminação.

Em meio a uma situação política delicada e de ânimos exaltados, o Jornal do Campus convidou Gustavo Dainezi, que é formado em Relações Públicas pela USP, e atualmente leciona a disciplina Ciência Política na Escola de Comunicações e Artes, para discutir essa disseminação do ódio na Internet.

Discurso de ódio domina posts sobre política nas redes sociais (arte: Guilherme Caetano)
Discurso de ódio domina comentários sobre política nas redes sociais (montagem: Guilherme Caetano)

JC – No que se caracteriza um discurso de ódio?
O ódio, na visão do maior filósofo que estuda esse assunto, Espinoza, é uma alegria que depende da tristeza do outro. Não é simplesmente uma inveja, é querer que o outro se afaste e seja diminuído, sofra, para que você se sinta engrandecido. O discurso coloca uma pessoa ou grupo nesta posição de ser atacado ou oprimido; sua destruição faz com que o sujeito que a provocou tenha um benefício.

Qual seria a real origem desse ódio? Desconhecimento, autoafirmação?
Ele é um sentimento como todos os outros, pelo qual expressamos nossas dificuldades. Em algum momento ele se manifesta e às vezes é motivado por questões justas, como perceber o beneficiamento indevido ou ilegal do outro. Resta a nós gerenciá-lo. Acho que é uma questão de análise pessoal, deve haver um questionamento nesse sentido, para assim perceber suas contradições e motivações.

No caso da agressão, ela é uma reação de insegurança e  impotência após a luta contra algo que te preocupa. Na falta de um mecanismo de defesa, acaba a civilidade e o cidadão ataca, ele tenta resolver na força algo que não conseguiu de nenhuma outra maneira.

As manifestações desse sentimento cresceram nos últimos tempos?
A história do Brasil é de amplo preconceito, no sentido agressivo de distinção social e de opressão a todos os vulneráveis. Sempre veio acompanhada dessa violência, a diminuição do outro, então o ódio circulou a todo o momento, com maior ou menor intensidade. Porém, de uns tempos para cá, esse discurso foi sendo cerceado através da resposta de outros grupos, como o movimento negro, os coletivos LGBT e a discussão de inclusão social. Graças à Internet, a vítima tem como responder e se defender, pode não ter o mesmo impacto da ofensa, mas pelo menos há uma possibilidade de desconstrução dessa sentença.

Não sei se está em uma intensidade maior, todavia é inegável que o espaço público está tomado pelo ódio. Podemos dizer que há um aumento de sua influência. Antigamente, um discurso não precisava ser repetido várias vezes para ser incorporado, estava dissolvido, agora o direcionamento está muito mais claro.

Como você vê a manifestação política dos professores, de que eles tomem partido?
Acho que ela demorou, eu notei outras faculdades se manifestando antes da USP, enquanto hoje já há quase um evento por dia. A Universidade está apenas demonstrando sua visão, algo que ela deveria porque comporta uma série de intelectuais importantes.

O caso da Janaína Paschoal, por exemplo, é complexo. Eu considero legítimo que se questione e critique seus argumentos, contudo é ilegítima sua descaracterização, chamá-la de louca e descontrolada. Ela é muito competente e tem um ponto de vista bem claro. Apesar de discordar do seu posicionamento e de achar que sua fala não deveria se basear no ódio, a discussão geral deve estar fundada na razão, jamais propagando ideias misóginas. A crítica não pode ser referente ao gênero dela. Achei que ficou muito patético por conta do espetáculo, só que isso não aconteceu porque ela é mulher.

Haveria, na esfera política, um perigo de dominação do extremo que possui o maior número de adeptos ao invés daquele que tem o melhor argumento?
Isso é um problema que acomete todo o regime democrático. Somos levados a acreditar que o que a maioria pensa seria o melhor, porque somos erroneamente ensinados que a democracia é a vontade da maioria, mas isso seria a tirania da maioria, porque ela não é necessariamente composta pelas melhores pessoas.

Metade da filosofia política diz que é necessária uma visão muito esperançosa do homem, que ele vai agir com justiça, pensando no bem comum, para achar que a maioria está sempre certa.

A política é a gestão do desejo, e subordinar um regime a esse valor não sustenta uma sociedade, porque ele é capaz das piores atrocidades, como o Holocausto. Por isso, é essencial que nenhum grupo domine a cena e que a vontade da maioria seja freada. A democracia depende do conflito de ideias e da admissão do outro. Se um único discurso dominar a cena, deixaremos de viver em uma democracia.

A mídia tem parte da culpa em disseminar esse discurso e insuflar a população?
Acho que tem grande parte da culpa. A mídia tem um poder de pautar o espaço público que a Internet ainda não tem. Ela tem retroalimentado o ódio, além de legitimá-lo, isso é muito perigoso.

Existe uma crença no Brasil de que a mídia é neutra. O processo de produção jornalística atende a critérios, que são definidos por pessoas e elas têm pontos de vista. O que tem me surpreendido é a radicalização do discurso. A dúvida é saber o que motiva isso.

Por que o ódio desmedido é prejudicial?
Porque ele não constrói nada, vive da destruição. Algo que foi construído com amor e dedicação pode ser destruído rapidamente por outro através do ódio. O que sai desse sentimento é sempre pior do que se tinha antes. Não é possível ter paz após uma sequência de ódio.

Qual a diferença do discurso atual para o que foi difundido antes da implementação da ditadura militar?
Pouca diferença, quase nada. A elite brasileira não mudou desde 1964, isso não sou só eu quem falo. O discurso é o mesmo, por exemplo, a manutenção do status quo, a exclusão de minorias, a ameaça comunista e a inflação. A semelhança argumentativa está bem explícita nos editoriais, que abordam, de forma nada isenta, a desordem social, o pedido da deposição do poder pelo argumento da “extrema necessidade” e a insegurança pelas reformas que ameaçam a elite. A diferença é que agora tem a rede social, mas o preconceito, a raiva e as acusações são os mesmos.

Se o impeachment for aprovado, me preocupa até aonde pode ir a intolerância. Vejo uma extrema violência e perseguição a um grupo específico, que reivindica ganho de direitos, a um movimento que não é estruturado pelo ódio.

Você acha que os políticos, de quem se esperaria o mínimo de comedimento, também ajudam a disseminar o ódio?
Principalmente os de oposição. Até há pouco tempo era um hábito zelar pela Constituição, respeitar as regras, ainda que os políticos agissem de acordo com seus interesses; um governante não iria propor uma ruptura gigante na ordem, porque isso vai contra sua manutenção. Eles estão agindo por benefício pessoal e de maneira irresponsável, essa estratégia é péssima, tanto que estão sendo expulsos das próprias manifestações. Esse processo também pode ser aplicado aos juristas, que estão dispostos a romper a institucionalidade praticamente a qualquer custo. Trabalhar a política pelo ódio é um retrocesso, é um valor pelo qual a ela jamais deveria se guiar.

Tem havido uma promoção ou afastamento do debate?
Seria preciso analisar se está ocorrendo uma discussão ou apenas insultos. Na maioria das vezes, a intolerância ao debate é maior do que a vontade de debater. Não consigo falar isso baseado em pesquisas porque ainda não há dados, mas por vivência e experiência no meio, vejo uma dificuldade de entender o outro. É como se a pessoa invadisse um espaço, falasse várias coisas e fosse embora. Acho que essa intersecção ainda está muito mais bélica, não encontro progresso no debate.

Existem casos em que o governo deveria fazer alguma intervenção?
O Estado tem que interferir em caso de crime. No entanto, a justiça comum demora para responder, quando responde, e está refém do fornecimento de dados pelas redes sociais, que demonstram uma grande resistência em cedê-los. Essas empresas controlam o espaço público e não se veem submetidas à lei do país.

Por um lado, a proteção é positiva pela garantia de privacidade, por outro, o governo perde seu poder investigativo, e quanto mais seguro você se sente, mais você tende a adotar comportamentos nocivos.

Falta, talvez, um bom legislador para mediar e fazer com que o Estado seja mais eficiente na fiscalização e na punição, sem que o povo se sinta vigiado, só que isso é uma linha muito tênue.

Punir a exteriorização desse discurso seria eficaz para destruí-lo ou ele ficaria apenas velado?
Seria eficaz para acabar com a sua influência, contudo ele vai continuar lá. Fazer com que as pessoas criem um senso próprio de julgamento é uma vantagem enorme, assim, trabalha-se na educação. A punição é um caminho como fator inibidor, o outro meio é que esses discursos percam projeção e retomem sua insignificância, porque hoje em dia acredita-se em tudo o que se ouve ou lê.

Caberia aos administradores das redes sociais controlar o conteúdo?
Eles deveriam controlar. Nas políticas do site já há uma série de proibições, como nudez e pedofilia. Porém, no caso de opinião, as redes sociais estão despreparadas, toda a sorte de imprudência não passa por verificação ou critério. Vejo que as empresas fazem pouco para melhorar essas questões, cria-se uma sensação de impunidade. A perspectiva de liberdade de expressão não é acompanhada de responsabilidade sobre o discurso.

O sistema jurídico está sendo substituído pela mediação do Facebook, que é baseada nas denúncias e não possibilita defesa. O objetivo é higienizar o ambiente, mais do que fazer justiça. Se há um número relevante de denúncias, o conteúdo é excluído. Eliminar um grupo ou manifestação sem uma análise é impensável fora da Internet.

Até que ponto seria limitação da liberdade de expressão ou um crime?
A discussão aí é legislativa. A legislação regulamenta o que se configura em crime, como a injúria e a difamação. Já é determinado como crime o discurso de ódio, mas o Judiciário apenas se manifesta mediante a provocação e está atolado de processos.

É muito complexo, porque estamos falando de um meio de comunicação cujo funcionamento acaba mais estimulando que inibindo. Grupos de defesa de minorias como feministas e indígenas, que pregam a igualdade, são vítimas de ataques virtuais e têm suas páginas bloqueadas porque abordam um lado sensível que as pessoas não gostam de entender. Páginas que promovem a violência passam pelo mesmo processo, entretanto, se elas não tomarem grandes proporções, continuam normalmente.

Qual seria a forma de minimizar o ódio?
Estamos ainda tentando entender o fenômeno, sua solução é mais difícil. Acho que não caminhamos para a resolução desse fato. Porém, posso dizer que a primeira camada de combate seria a conscientização das redes sociais, depois, da administração pública e por último, dos cidadãos, através da educação; esses três pilares são boas resistências.

Também, é importante rever o espaço público, pois ele está colocado de modo inadequado nas redes sociais, que são um ambiente de consumo. Não há discussão política possível em um local que é moldado para a consonância; o debate exige questionamento.

As plataformas estão incentivando que o usuário se sinta à vontade, com isso, ele está mais fechado em si mesmo. A concordância cognitiva serve muito bem para as marcas, para o direcionamento de anúncios, mas no caso da opinião, ela alimenta um mesmo ponto de vista. Você se convence cada vez mais de que está certo, o que é ilusório. O meio, mais do que nunca, favorece a desinformação e radicalização, o que gera incapacidade de convivência.

A estruturação de um novo espaço demanda longas discussões e as propostas são utópicas. Talvez funcione com plataformas de debate on-line, porque seria inviável que ele fosse presencial pelo número de pessoas que participariam, ou mesmo um algoritmo que obrigue o usuário a ter contato com outras visões, todavia, se o Facebook desagradasse, ele perderia público.

Por Isabella Galante