Muito além da Capa

Bibliotecas, portarias e até salinhas de zelador podem esconder grandes talentos. O Jornal do Campus desvenda o lado b de alguns dos funcionários mais talentosos da Universidade

A USP tem cerca de 17 mil funcionários espalhados por seções administrativas, bibliotecas, portarias e até salinhas de zelador.  Mas, por trás de suas funções cotidianas, muitos carregam talentos surpreendentes. Do vigia que faz croquis de moda à técnica de laboratório que vai expor suas obras em Paris,  mostramos algumas histórias  de talentos nada óbvios do Campus.

De almoço eu quero samba

Apesar de nem ter um restaurante para chamar de seu, o IPUSP (Instituto de Psicologia – USP) não fica exatamente uma calmaria na hora do almoço. O movimento de alunos, professores e funcionários é especialmente animado às quintas-feiras, quando acontecem os ensaios da banda “Samba do Bico”. O conjunto tem quatro integrantes: no violão, Sidnei Luccas, o Bico – que dá nome ao conjunto -, eletricista do Instituto; no pandeiro, Luiz Carlos Martins,  o Luizão, funcionário da sala pró aluno; no cavaquinho, Flávio Theodoro, ex-aluno de mestrado e no no mesmo instrumento de Bico, Pedro Moraes, aluno do quinto ano da graduação.

Banda “Samba do Bico” durante ensaio semanal na sala de manutenção do Instituto de Psicologia (foto: Sofia Mendes)
Banda “Samba do Bico” durante ensaio semanal na sala de manutenção do Instituto de Psicologia (foto: Sofia Mendes)

Há cerca de 3 anos eles se reúnem uma vez por semana para tocar um samba de raiz daqueles que faz qualquer um começar a mexer os quadris sem nem mesmo perceber. Tudo começou quando o Luizão, veterano no samba, resolveu se reunir com amigos de trabalho para fazer um som. “Mas sem pretensão, a gente queria era brincar na hora do almoço”, esclarece o Luizão.

A brincadeira, inclusive, atraiu outros alunos – foi aí a origem do famoso Samba da Psico, uma espécie de Happy Hour comandada pelos docentes que acontece em algumas sextas-feiras. Além disso, o sucesso do “Samba do Bico” já atingiu outros Institutos: acostumados a tocar nas festas de funcionários da Psico, o conjunto se apresentou na FAU no fim do ano passado e, segundo eles, a apresentação foi um sucesso. A banda é um achado dentro do IPUSP – quem entra na salinha de manutenção de seu prédio mais isolado nunca deve imaginar o som que é feito ali semanalmente. Mais surpreendente ainda é a formação do conjunto – dois funcionários com mais de 20 anos de casa com dois alunos com cerca de metade da idade dos veteranos. Tanta diferença, porém, quase não é vista quando fala mais alto o que formou essa mistura improvável. “O samba foi a linguagem comum entre os alunos e os funcionários”, afirma Flávio. Quem entende a linguagem do samba não precisa falar mais nada.

Da portaria à passarela

Estilista Laerte (foto: Sofia Mendes)
Estilista Laerte (foto: Sofia Mendes)

Para quem frequenta a ECA não deve ser novidade entrar em um dos blocos de aula e se deparar com um porteiro que, com materiais de arte na mesa, faz desenhos e croquis de moda. O artista é o paranaense Laerte Rodrigues de Souza, de 41 anos, que trabalha cobrindo as folgas e almoços dos outros vigias da Unidade mas, nas horas vagas, põe em prática o que estudou numa escola de arte e design de moda.

Mesmo tendo nome de artista, Laerte nunca considerou que a moda pudesse ser um hobby ou, até mesmo, sua profissão. “Eu venho da roça, então nunca pensei em ser estilista na vida”, conta.

Hoje, com lápis, borracha, tinta e pinceis, ele desenha seus croquis inspirados nas tendências que vê em revistas e na internet mas, principalmente, nas pessoas que ele vê na rua. E não deixa de chamar atenção de quem passa por ele em horário de trabalho, chegando até a  ganhar elogios. “Para mim é bom. Para quem veio do meio do mato receber um elogio, seja de um professor, seja de um aluno aqui da USP é grande coisa”, completa.

Arte do cotidiano

Alexandre Pariol Filho, diretor do Sintusp e técnico acadêmico da Faculdade de Direito, iniciou a vida artística na infância. Com cerca de dez  anos fazia desenhos com grafite  comum, às vezes com caneta. Hoje, ele ainda começa a maioria de seus trabalhos com lápis e papel, mas depois transporta a ideia para uma tela.

Alexandre aprendeu a desenhar e pintar sozinho. “Eu sempre fui autodidata, sempre procurei estudar bastante, ler bastante, sempre gostei muito de arte”, diz ele. Apesar disso, não frequentava muitos museus quando era criança. “Eu morava na periferia de São Paulo, então a gente não conseguia ter acesso a muita coisa. Mas com o tempo eu fui descobrindo museus, fui passeando um pouquinho por aí”, explica.

Alexandre exercendo (foto: Luiza Magalhães)
Alexandre exercendo seu hobby (foto: Luiza Magalhães)

Embora Alexandre no início não visse como principal prioridade expor seu trabalho, hoje acredita estar mais preparado para isso, pois com a evolução de suas obras ele sente que já criou um estilo próprio.

Ele conta que sempre começa seu trabalho a partir de um ponto, “um ponto muito jogado, tanto no desenho quanto na tela”. Daí, vai se guiando pela inspiração que vem do que está acontecendo no momento. “Eu gosto de pintar de forma meio que surrealista o meu cotidiano, as impressões que vejo do mundo”, afirma Alexandre. “Eu gosto muito do mundo, e gosto de que a arte seja parte do cotidiano das pessoas”, completa.

Talento em alto relevo

Toninho com uma de suas pinturas (foto: Sofia Mendes)
Toninho com uma de suas pinturas (foto: Sofia Mendes)

Ao entrar na primeira salinha à esquerda no bloco de manutenção do Instituto de Psicologia já é possível perceber que ali “mora” um artista, já que as paredes são recheadas de pinturas e colagens. O autor das obras é Antônio Gomes Ribeiro, o Toninho, como todos no Instituto o conhecem. Todos mesmo, já que o morador de Embu das Artes, de 67 anos, trabalha há 35 como zelador da Psico.

Seu Toninho pega como inspiração o que vê por aí – da colagem de fotos, feitas por ele mesmo do lugar em que trabalhou mais da metade da sua vida, à sua filha grávida, tudo pode virar arte em suas mãos. Chamam atenção as pinturas em alto relevo, efeito que ele consegue com aparatos como espátulas e rolinhos.

Seu acervo é tão grande que ele já pensa em fazer uma exposição em sua cidade, que já tem a arte marcada no nome. Já são cerca de 90 obras entre as suas favoritas e a do público selecionadas por ele. Agora, se depender de seus colegas de trabalho, a exposição será um sucesso de público. “Dois dos últimos diretores [do IPUSP] têm quadros meus”, conta, orgulhoso.

Cores da infância

Desde 2002, Ana Gomes trabalha no laboratório de prótese da Faculdade de Odontologia. Começou a desenhar, com lápis, aos nove anos. “Eu via na TV um programa da Cultura que ensinava a desenhar rostos, aí eu comecei sozinha, e depois que fui conhecer a tinta, as técnicas”.

Atualmente, tem trabalhado bastante com o tema da infância. “Não um quadro para criança, mas um quadro que fala sobre a criança”, explica. “Eu tenho um filho de nove anos, e às vezes ele fala ou faz alguma coisa e eu penso que daria uma tela legal, aí vão surgindo as ideias assim”.

Quadros de Ana, que representam cenas de infância, ganharão espaço no Carrossel do Louvre (foto: Luiza Magalhães)
Quadros de Ana, que representam cenas de infância, ganharão espaço no Carrossel do Louvre (foto: Luiza Magalhães)

Ana participa de exposições há cerca de 15 anos, mas foi no ano passado, após participar do Salão de Outono do Memorial da América Latina, que começaram a chegar muitos convites, inclusive levando sua arte para fora do Brasil. Seus quadros foram para exposições na Áustria e nos Estados Unidos e, ainda este ano, serão expostos em Portugal e no Carrossel do Louvre (galeria comercial localizada no subsolo do museu francês).

Ela conta que gostaria que a Semana de Arte da USP, da qual participou todos os anos desde que entrou na universidade, fosse unificada: “Seria muito legal conhecer os artistas das outras unidades, se tivesse uma divulgação maior e uma unidade maior entre as faculdades”.

Da dança do ventre ao flamenco

Ellen escreveu livro sobre dança (foto: Luiza Magalhães)
Ellen escreveu livro sobre dança (foto: Luiza Magalhães)

Funcionária do Serviço de Graduação da ECA, Ellen Eliza Pereira é também professora de dança. Ela começou a fazer dança do ventre com 17 anos e dar aulas foi sua primeira profissão, logo que se mudou do interior para cursar História na USP.

Em 2009, Ellen ingressou no mestrado e começou a pesquisar discursos sobre dança na Espanha do século XVII. A ideia surgiu porque, quando iniciou a pesquisa, ela fazia aulas de flamenco e tinha curiosidade de saber como foi a influência árabe nesse tipo de dança.

Apesar de ser profissional na dança do ventre, o flamenco é minha paixão”, conta. “No mestrado eu consegui aliar o histórico e mostrar a dança através de uma perspectiva social”. Sua dissertação de mestrado deu origem ao livro Bailes e danças representados e discursados na Espanha (1600-1660), publicado em fevereiro deste ano.

Ela conta que gostaria que a universidade incentivasse mais a produção artística, e exemplifica: “poderia haver convênios para trazer alunos de escolas públicas, que a gente pudesse dar cursos. Como quem paga a USP é o povo, seria interessante se ela pudesse reverter isso para a sociedade”.

A experiência do teatro

Jany faz teatro desde 2006 (foto: acervo pessoal)
Jany faz teatro desde 2006 (foto: acervo pessoal)

Jany Canela é atriz e funcionária da Faculdade de Educação (FE) desde 2003, trabalhando como educadora no Programa de Formação de Professores. A primeira vez que fez teatro foi em 2006, quando começou a participar de oficinas do Lab_Arte (Laboratório Experimental de Arte-Educação & Cultura, laboratório didático da FEUSP). Na época, ela estava desenvolvendo seu mestrado, cujo tema era formação de professores e ludicidade.

“A pesquisa envolvia a ludicidade, as brincadeiras, então tinha muito essa coisa do corpo”, explica Jany. “Naquele momento eu estava experimentando coisas que tinham a ver com o corpo, com o movimento, e aí quando surgiu a oficina de teatro eu fui por causa disso”.

Desde então, Jany participou de outros grupos de teatro, destacando a peça “O Expresso K”, sobre a vida de Kafka, como a que marcou sua entrada no teatro de maneira profissional. Além de São Paulo, a peça também foi apresentada em Praga e Belgrado, por meio de um edital de intercâmbio da USP que o grupo ganhou.

“Para mim, o teatro é uma experiência”, conta Jany. “Não é só a atuação, mas é uma outra relação com o outro. Eu gosto que seja uma coisa que me toque e que toque quem está assistindo, senão para mim não faz sentido”.

Por Luiza Magalhães e Sofia Mendes