“Pílula do câncer não é milagrosa”, diz médico

De um lado, pacientes acreditam terem sido curados pela fosfoetanolamina sintética. Do outro, comunidade científica rechaça seu uso com a eficácia ainda não comprovada.

Ela começou a ser estudada no fim dos anos 80, pelo então professor do Instituto de Química de São Carlos, Gilberto Chierice. A fosfoetanolamina sintética já foi distribuída gratuitamente, banida, produzida só sob ordem judicial e, agora, seu uso foi autorizado por lei (leia mais abaixo).

Todo esse processo é enxergado como alarmante pela comunidade científica: “A ‘fosfo’ não passou pelas etapas necessárias de pesquisa clínica e farmacêutica, portanto, não há como dizer se ela funciona”, diz o presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), Mauro Aranha.

Cápsulas de fosfoetanolamina: produzidas desde os anos 90 no Instituto de Química de São Carlos. (Foto: Cecília Bastos)
Cápsulas de fosfoetanolamina: produzidas desde os anos 90 no Instituto de Química de São Carlos. (Foto: Cecília Bastos)

A pílula agiria “marcando” as células cancerosas para que o próprio corpo, através do sistema imunológico, as eliminasse. Isso só é possível porque essas células são anaeróbicas (não utilizam oxigênio), o que significa que as mitocôndrias, que realizam a respiração celular aeróbica, estão inativas. A fosfoetanolamina ativaria as mitocôndrias, sinalizando a presença da célula defeituosa no organismo. Assim, o sistema imunológico entraria em ação, estimulando a apoptose, um tipo de morte celular.

Segundo Eládio Amorim, taxista de Recife, foi isso que fez a sua esposa, Alda de Souza, apresentar uma melhora significativa. No começo de 2014, ela foi diagnosticada com um carcinoma mamário já em estágio avançado. Em maio do mesmo ano, ela já não respondia mais à quimioterapia, e, em julho, fez uma mastectomia. O marido, em pesquisas, descobriu a fosfo, nome pelo qual a substância é popularmente chamada: “Contratei uma advogada em São Paulo que deu entrada no processo para obtermos a pílula. 15 dias depois o remédio chegou”. Durante os 15 dias de espera, ele afirma que os médicos foram categóricos. “Eles disseram que não tinha mais o que fazer, o câncer tinha entrado em processo de metástase. Já tinha ido para a garganta dela, ela não respirava direito, não falava direito, não comia mais”.

De acordo com o taxista, a melhora de Alda já era nítida três dias após o início do tratamento com o novo remédio. “Ela voltou a comer, saiu da cama, até andou de bicicleta. Ficou cheia de vigor”, afirma. Depois da primeira remessa, que durou um mês, eles não conseguiram mais pílulas, mesmo com a ordem judicial. Eládio relata que o câncer voltou com tudo e, em dezembro, Alda morreu.

“A ciência não conhece tudo sobre o câncer, há casos em que a doença pode não progredir, e isso se confunde com “ela não progrediu porque usou o remédio”. Isso não é necessariamente verdade”, comenta Mauro Aranha. Como o remédio não foi testado em humanos, não se conhece o seu nível de toxicidade e se ele realmente é superior a outras drogas. “Um outro problema é que não sabemos qual relação medicamentosa pode se estabelecer entre a fosfoetanolamina e as drogas convencionais”, explica.

Liberação da substância pelo governo federal pula etapas de regulamentação da Anvisa

A polêmica envolvendo o uso da fosfoetanolamina para o tratamento de pacientes com câncer ultrapassou a comunidade científica e ganhou, nos últimos meses, espaço no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Congresso Nacional.

No último dia 14, a presidente Dilma Rousseff sancionou o projeto de lei que libera a produção, a venda e o uso da chamada pílula do câncer. A decisão ocorreu sem a aprovação da substância pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), e apenas treze dias depois do fechamento do laboratório do IQSC (Instituto de Química de São Carlos) da USP – onde a “fosfo” estava sendo produzida.

A lei autoriza que pacientes com câncer façam uso da substância desde que apresentem laudo médico e assinem um termo de consentimento e responsabilidade. Além disso, permite a importação, distribuição e prescrição do medicamento somente para agentes autorizados pela autoridade sanitária competente, como a Anvisa – ainda que a fosfoetanolamina ainda não tenha registro no órgão.

Regulamentação Ao Jornal do Campus, a Anvisa confirmou  estar em estudo a possibilidade de entrar com uma ação judicial contra a liberação – os argumentos a serem utilizados estão em análise pelo departamento jurídico da agência.

O maior problema é que a substância, apesar de produzida há décadas, nunca passou pelos estudos clínicos necessários para comprovar sua segurança e eficácia. Para um medicamento ingressar no mercado, ele precisa ser autorizado pela agência, que analisa o pedido de registro feito por uma empresa e os estudos apresentados sobre determinado medicamento.

A empresa que protocola o pedido precisa conduzir, primeiro, estudos pré-clínicos, o que inclui simulação por computador e estudos in vitro, ensaios em um órgão isolado, para então avançar aos testes em animais. Depois, há ainda uma fase clínica, que exige várias etapas, entre elas: testes com humanos sadios (para comprovar que o medicamento não faz mal) e estudos com voluntários que apresentem a doença pesquisada (para assegurar a eficácia da droga).

Somente depois dos testes e da concessão de registro pela Anvisa é que o medicamento pode ser colocado no mercado. Na falta dessa regulamentação, não se sabe ainda quem vai produzi-lo.

USP Questionada pela pelo Jornal do Campus, a Reitoria afirmou, em nota, que o laboratório não será reaberto e que a USP não pode e nem irá produzir a substância. “A patente da fosfoetanolamina é de propriedade, dentre outras pessoas, de um professor aposentado da Universidade, de modo que a USP não pode produzir a substância, sob pena, inclusive, de responsabilização penal dos envolvidos (artigo 183 da Lei Federal n. 9279/96”.

A Universidade afirmou que não é uma indústria química ou farmacêutica e que não tem condições de produzir a substância em larga escala.

Ana Luísa Moraes

Isabel Seta