“Que legitimidade teria um novo governo?”

(Foto: Revista Brasileiros)
(Foto: Luiza Sigulem/Revista Brasileiros)

Jurista questiona a condução do processo de impeachment por políticos suspeitos de corrupção

Professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo, Conrado Hübner Mendes descomplica o entendimento das leis e dá opiniões afiadas sobre política em grandes jornais como Folha de S.Paulo e El País Brasil. Autor do premiado livro Cortes constitucionais e democracia deliberativa, ele é defensor ferrenho dos movimentos sociais e não poupa críticas a qualquer governo que os prejudique.

Doutor em Ciência Política pela USP e em Filosofia do Direito na Universidade de Edimburgo, na Escócia, Conrado faz parte do time de juristas que questiona o afastamento da presidente Dilma Rousseff, aprovado pela Câmara em 17 de abril. No entanto, Mendes critica o uso da palavra “golpe”: “Ele vitimiza demais um governo cujos erros e arbitrariedades não podem ser jogados para debaixo do tapete.”

Em entrevista ao Jornal do Campus, o professor comenta a crise política, reflete sobre a legitimidade do impeachment e explica alguns aspectos jurídicos do processo, como as pedaladas fiscais, uma manobra econômica que implica no atraso do repasse de dinheiro aos bancos.

Jornal do Campus — Se de fato ocorrer o afastamento, como tudo indica que irá, quais serão os reflexos nos movimentos sociais e na democracia brasileira?

Acho que há algumas pistas. Michel Temer já está sofrendo pressão dos grupos de interesse mais retrógrados da política brasileira para aprovar sua agenda, o que inclui a revogação do Estatuto do Desarmamento, a aprovação do Estatuto da Família, o combate à demarcação de terras indígenas e outros. Que o advogado Mariz de Oliveira, um dos críticos mais vocais da Lava-Jato, tenha sido cogitado para ser ministro da Justiça também diz bastante sobre como o governo lidará, entre outras coisas, com o combate à corrupção. Vamos ver o que vem pela frente.

Como você avalia o conservadorismo na Câmara dos Deputados, escancarada durante a votação do impeachment?

O que vimos na Câmara não é só conservadorismo. Atitudes e valores conservadores, seja na economia, seja nos costumes, podem ser compatíveis com a Constituição de 1988. O que temos é mais grave: uma mistura de práticas obscurantistas, patrimonialistas e anti-republicanas, quando não teocráticas. Não se trata de uma disputa entre conservadores e progressistas. Ao contrário, está se fortalecendo ali uma grande frente para corroer o próprio projeto da Constituição de 1988. Valores como igualdade, autonomia, emancipação e não-discriminação os assustam. Querem resgatar um Brasil que pensávamos estar superado, ao menos no discurso. Não estamos falando de uma Câmara conservadora, mas primitiva.  

Por que existem divergências sobre as pedaladas fiscais serem crime de responsabilidade ou não?

Trata-se de uma discussão jurídica sobre gestão financeira cheia de nuances técnicas, o que é difícil de examinar aqui. Porém, sabe-se que FHC, Lula e mais de uma dezena dos atuais políticos a praticaram. Sabe-se que, ironicamente, o próprio relator do pedido de impeachment no Senado, o ex-governador mineiro Anastasia, também praticou. É rotina de gestão financeira. Se Dilma for punida, e se for confirmada a previsão, para mim bastante plausível, de que esse precedente não se reproduzirá para mais ninguém, temos um problema sério para a legitimidade do processo todo. Há muitas evidências extra-jurídicas para mostrar o quanto a fachada de legalidade busca disfarçar a arbitrariedade.

Por falar em arbitrariedade, a própria presidente e os críticos do impeachment têm usado a palavra “golpe” para se referir ao modo como o processo está sendo conduzido. Você acha que esse uso é apropriado?

É até compreensível que o governo faça uso dessa retórica do golpe, como trincheira. Chamar adversários de golpistas é uma prática bastante banalizada, inclusive. Prefiro dizer que se trata de um processo profundamente ilegítimo, a começar por quem o conduz e o lidera. Se a confirmação do impedimento merecerá ser chamada de golpe ou não, a história vai dizer, ao analisar os fatos retrospectivamente. Por enquanto, quero recusar esse caminho: primeiro, porque ele vitimiza demais um governo cujos erros e arbitrariedades não podem ser jogados para debaixo do tapete; segundo, e principalmente, porque a ideia de golpe interdita a esperança de diálogo com o outro lado, com os defensores do impeachment que estão dispostos e dialogar criticamente e racionalmente.

O que você quer dizer com “profundamente ilegítimo”?

Legitimidade é um conceito subversivo, pois é dele que deriva, em última análise, o nosso dever de obedecer às ordens do Estado. Quando um regime está numa crise dessa magnitude, quando o interesse público está tão soterrado pela briga de forças, nosso dever de obedecer entra em modo de espera e deixa de ser um dado evidente. Um processo conduzido por agentes tão sujos quanto Michel Temer e Eduardo Cunha é trágico. Para que seja um governo legítimo, não basta que sigam as regras do jogo, é preciso que este pareça digno de respeito. Essa qualidade, contudo, Temer e Cunha, definitivamente, parecem não ter. É só olhar para a biografia e as atuais denúncias contra ambos.

Considerando esse cenário, você acha possível ou constitucionalmente aceitável que se convoque novas eleições por emenda constitucional?

Uma emenda que viesse a ser proposta pela presidente e o vice-presidente, juntos, poderia até sanar um eventual vício de inconstitucionalidade caso essa emenda fosse proposta diretamente pelo Congresso Nacional. Mas isso configuraria a interferência do Poder Legislativo no Executivo, violando a independência dos poderes. Temer tem mandato, portanto precisaria ser co-autor dessa proposta. Como sabemos, ele não está disposto a aceitar esse procedimento, e o Congresso, menos ainda. Para mim, essa discussão parece uma grande perda de tempo.

Quais foram os maiores erros da presidente Dilma nesses dois mandatos, que de alguma forma explicam o que está acontecendo?

No calor dos acontecimentos, acho difícil dizer muita coisa. Ainda que o impeachment, configurado juridicamente como está e conduzido pelas pessoas que o conduzem, seja profundamente ilegítimo, vale a pena não esquecer o que fez o governo Dilma. Graves problemas o atingiram: ele não hesitou, por exemplo, em instituir ou tolerar regimes de exceção na forma pela qual construiu a hidrelétrica de Belo Monte, como realizou a mega-operação da Copa do Mundo, como se omitiu diante da medieval situação da segurança pública brasileira e do sistema prisional; não vacilou em rifar o Ministério da Saúde para alguém obtuso, no meio de uma epidemia do vírus Zika. São violações massivas de direitos. Esses fatos, inclusive, poderiam fundamentar pedidos mais críveis de crime de responsabilidade. Escolheu-se, contudo, o alvo da pedalada fiscal, uma prática que, errada ou não, faz parte dos usos e costumes da administração pública brasileira. O governo atual recebeu o apoio popular nas últimas eleições, algo que, se não o imuniza contra seus eventuais desvios, é um trunfo poderoso. Que legitimidade Michel Temer e Eduardo Cunha teriam para sustentar um novo governo?

Nyle Ferrari