Universidade é exposição a céu aberto

Passar pelo campus da USP é como revisitar uma exposição de arte todos os dias. Em meio aos prédios e árvores, obras artísticas buscam encontrar seu espaço e compor uma paisagem mais poética do ambiente uspiano. Há diversas esculturas na universidade e, por trás delas, histórias sobre a ditadura militar no contexto universitário, figuras importantes da USP e a discussão de arte pública na universidade. O Jornal do Campus conversou com os artistas que produziram algumas dessas obras, além de pesquisadores e especialistas que buscaram olhar para o cenário em que esses trabalhos estão inseridos.

O reflexo da Ditadura Militar nas Esculturas

Quem cruza a praça da Cidade Universitária a caminho do bandejão central não deixa de notar a Torre do Relógio, de 50 metros de altura, que se ergue pelo céu, ela foi pensada nos anos 50, antes da construção efetiva do campus. Os painéis foram realizados por Elisabeth Nobiling, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.

O projeto original, de Rino Levi, previa a instalação de três sinos, réplicas de sinos da Universidade de Coimbra, porém o esboço não foi adiante e o sino doado foi instalado na Reitoria. Os painéis representam os mundos da fantasia e da realidade, sendo que o que representa o da fantasia tem a face voltada para o prédio da antiga Reitoria e a face oposta, da realidade, está voltada para o prédio da Reitoria nova. No entanto, a professora Maria Cecília Franca Lourenço, ex-coordenadora do Centro de Preservação Cultural (CPC) da USP, explica que a outra face da torre universitária, mais obscura e desconhecida, é a sua relação com a ditadura militar e a construção desse monumento como forma de obstruir a formação estudantil.

Essa relação com a ditadura militar também está presente em outras obras. Muitas foram criadas como forma de atrapalhar a reunião de pessoas. “Não eram [instaladas] para humanizar espaços, mas o contrário disso”, explica Maria. “Muitas obras vieram por trocas durante a ditadura, devido à proximidade dos reitores com o regime”.

Uma outra obra com relação à ditadura, porém com sentido oposto,  é o Monumento à Ana Kucinski, instalado no Instituto de Química (IQ) da USP. Ana foi professora do Instituto, sequestrada e morta por agentes da ditadura, e na época, o Instituto a demitiu sob justificativa de abandono de emprego. Em 2014, 40 anos depois, o IQ reconheceu a morte da professora e reverteu sua demissão, e a escultura em formato de rosa foi inaugurada como forma de homenageá-la.

Foto: Fernanda Maranha
Obra instalada em memória de Ana Kucinski, vítima da ditadura. (Foto: Fernanda Maranha)

De Tomie a Galileu

Tomie Ohtake é uma das artistas consagradas com obras instaladas no campus, como a escultura “Ultramarinho”, instalada em frente ao antigo prédio do MAC, o painel doado ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, a escultura na FEA e o Monumento à Amizade entre Brasil e Japão. Este foi instalado próximo à Casa de Cultura Japonesa em homenagem aos 90 anos de imigração.

No final da avenida Prof. Luciano Gualberto, é quase impossível não perceber a figura impotente do Monumento Ramos Azevedo. Obra do escultor e fundador da Escola Politécnica, Galileo Emendabili, ela foi inaugurada em 1934 e instalada na Avenida Tiradentes, mas depois, em 1973, foi transferida para a Cidade Universitária.  

A escultura homenageia o arquiteto brasileiro Ramos de Azevedo, que se encontra na base granítica da obra em uma postura meditativa.  No topo, há um cavalo alado, montado por um gênio. Em sua mão, se encontra uma esfera símbolo da força universal e uma deusa símbolo da criação. Nesta obra, o cavalo (Pégaso) é símbolo da imaginação que eleva o homem às regiões mais sublimes, expressando assim a ideia de progresso humano.

Preservação e Manutenção

As obras de arte foram instaladas em sua maioria por transferência de outros espaços, como o Monumento à Ramos de Azevedo, construídas para homenagens e aniversários comemorativos, como a escultura de Tomie Ohtake em homenagem aos 90 anos de imigração japonesa, ou ainda por iniciativa própria dos artistas. Para Maria Cecília, faltam medidas da universidade para a sistematização dessas obras e escolha de critérios para o recebimento, além de cuidados com a manutenção dessas esculturas. Ela explica que houve uma proposta para que o CPC fosse responsável por essa sistematização, mas ela não foi aceita. “Uma coisa que me frustrou é que o CPC deveria discutir o critério para a escolha e documentação das obras de arte. A gente poderia ter projetos de exposições temporárias, abrir concursos para os alunos de artes… A USP deveria ter essa sistematização”, ela afirma.

As esculturas estão sujeitas à deterioração e a manutenção fica a cargo de cada unidade em que a obra se encontra, mas muitas vezes não é realizada. Questionada pela reportagem do Jornal do Campus sobre a preservação desse acervo, a Superintendência do Espaço Físico da USP, afirmou em nota que, ainda como Fundusp (Fundo de Construção da USP), contratou a limpeza e tratamento do concreto da Torre Universitária.

Artistas trazem poesia para o campus

Mesmo que muitas vezes de forma implícita, as esculturas têm um papel importante no contexto universitário. A maioria das pessoas, por exemplo, já citou alguma dessas obras para indicar a localização de um determinado lugar. Porém muito mais que apenas um ponto de referência, essas produções podem provocar diversas reflexões. O Jornal do Campus foi conversar com os artistas Ricardo Ribenboim e Erasmo Tolosa, responsáveis por criar parte  das esculturas presentes no Campus.  

A obra “Tampas” do escultor e produtor cultural Ribenboim  integra o espaço do Jardim do Conselho Universitário. A peça feita em fibra de vidro representa duas tampas de refrigerante jogadas na calçada. De acordo com Ribenboin, esse trabalho faz parte de uma longa pesquisa sobre a diluição do mito da Coca-Cola, no limite entre o design e as artes visuais. A Coca-Cola  é personagem do próprio mito, porém o consumo vê apenas uma das partes do processo, o percurso até o gole. “A permanência, a decadência ou até mesmo as transformações que ela sofre ao longo do tempo não são percebidas. O design atemporal, mesmo que sua publicidade sempre frise a juventude, nos esconde seu envelhecimento.”, afirma o artista. Em 1999, a obra “Tampas” fez parte de uma exposição no Museu de Arte Contemporânea (MAC) e nessa época o escultor propôs a doação dessa produção para o MAC.

Obra "Tampas", produzida por Ricardo Ribenboim representa a diluição do mito da Coca-Cola. (Foto: Isadora Vitti)
Obra “Tampas”, produzida por Ricardo Ribenboim representa a diluição do mito da Coca-Cola. (Foto: Isadora Vitti)

Para o artista, a universidade precisaria estabelecer uma política de aquisição de obras e ampliar o jardim de esculturas no campus. Isso pode ser feito a partir de intervenções urbanas com obras efêmeras que estabelecem diálogo entre o espaço urbano e o cidadão, até obras de longa duração poeticamente implantadas. Na Universidade de Fortaleza, por exemplo, Ribenboin participou do programa de implantação de exposições, com intuito de formar os sentidos do olhar contemporâneo, a partir de apresentações temporárias de nomes como Beatriz Milhazes, Adriana Varejão e Hélio Oiticica. “Essas mostras também capacitam o público para compreender a coleção instalada na universidade”, menciona o produtor cultural.

O olhar dos frequentadores da USP também já cruzou em algum momento com as produções do professor da Faculdade de Medicina, Erasmo Tolosa.  Em frente à Escola de Comunicações e Artes (ECA), há uma obra, que tem o mesmo nome da unidade, composta por dois arcos interagindo dentro de um outro. Segundo Tolosa, a ideia era mostrar o diálogo da arte com a comunicação.

A obra "ECA" representa o diálogo entre arte e comunicação. (Foto: Isadora Vitti)
A obra “ECA” representa o diálogo entre arte e comunicação. (Foto: Isadora Vitti)

Nos trabalhos do professor a grande protagonista é a sucata. Fascinado por esse material o artista produz suas esculturas em uma oficina em Capivari. “Eu vejo as peças, uma delas me chamam a atenção, e daí começa um universo”, aponta o escultor que também revela sua paixão pelas curvas. No Hospital Universitário, a obra “Missão” é uma representante desse estilo. Segundo o artista, ela simboliza algumas das principais missões do Hospital: ensino, pesquisa e prestação de serviço à comunidade.

Outra importante obra do artista é a escultura “Politécnica”, que é uma roda situada em um pedestal. Tolosa conservou a rachadura da peça original e não a fechou, pois queria simbolizar que o progresso da Escola nunca acabava. Nos 80 anos da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE), o professor produziu a obra “Evolução”, que são tubos de diferentes tamanhos, cada um representava 10 anos da unidade.  A escolha dos tubos era para mostrar a evolução da Escola.    

Amanda Oliveira

Isadora Vitti