A dúvida como essência do pensamento

No último dia 16, foi divulgado o resultado das eleições para o DCE (Diretório Central dos Estudantes) da USP para o ano de 2016. A chapa Primavera foi a vencedora com 3.398 votos, representando 43% de um total de 7.839 votos contabilizados em todos os campi. Dos mais de noventa mil graduandos e pós-graduandos matriculados na universidade, apenas 8,7% se mostraram interessados em se ver representados politicamente pela entidade estudantil. Esse número está caindo.

Em 2014, 10.401 alunos foram às urnas; no ano passado, 8.994. Isso significa ter havido, em dois anos, uma redução de 24,6% na quantidade de votantes. Durante período de maior alvoroço na política nacional desde a redemocratização, surgido com a reeleição de Dilma Rousseff (PT) e intensificado por seu processo de impeachment, a disposição dos estudantes para a política universitária arrefece.

Não pode ser descartada a proposição de que o acirramento do debate político enfraqueceu a conciliação das partes e até levou a um desinteresse de alguns públicos. Mesmo com as pessoas realmente discutindo mais, estariam elas ainda se ouvindo?

O Facebook tem um ótimo indicativo do que seus usuários tomam por debate. Discute-se para vencer e o número de curtidas nos comentários (que comumente se intercalam contrapondo-se de modo pouco producente) indica o vitorioso. A recente possibilidade de reagir a comentários com diferentes representações de sentimentos, aliás, torna o feed de notícias uma grande plateia de espetáculos pública.

O desejo da vitória e a conveniência em se ter um derrotado faz desaparecer a preocupação em passar mensagens —que sejam acolhidas condescendentemente. Procura-se destruir os demais interlocutores e somar a um placar que nunca será contabilizado. Quem comenta por último comenta melhor. Irrompe a inevitabilidade de réplicas perenes e a satisfação em não deixar passar uma chance de criticar e expor uma opinião. Como se a história esperasse por nosso posicionamento explícito. Ou como não tê-lo configurasse algum tipo de alienação pessoal.

Qual o sentido em provar a uma pessoa seu erro se esta não pediu opiniões e talvez nem as quisesse? Alguém convencido contra sua própria vontade conservará sempre as ideias anteriores, sendo uma forma de se agarrar ao que tentou lhe ser retirado, desvirtuado.

Ideias pessoais representam não somente um conjunto de ponderações, significam uma identidade cognitiva, um eu cristalizado em crença e ponto de vista. Não é fácil cedê-las a quem as aflige. A opinião de cada pessoa lhe é tão estimada como poucas coisas podem ser.

Todo argumento que procure se sobressair intelectualmente aos pontos do interlocutor contém uma dose de veneno. Contamina a comunicação como nada mais o faz. A maiêutica de Sócrates é sublime por nenhuma outra razão. Faz o próprio indivíduo se convencer de outra verdade. Desfaz-se de seu antigo juízo por ter ele mesmo concebido outro. Ninguém o tira absolutamente nada.

Charge "O diálogo é a única ponte entre ilhas cognitivas" de Walter Rego
Charge “O diálogo é a única ponte entre ilhas cognitivas” de Walter Rego

Caso a intenção seja genuinamente reunir para perto de si os desafetos, ou pelo menos conquistar mais adeptos a uma tese, considerando todos os indivíduos ilhas e o mar que as permeia a incompreensão, persiste alguma lógica em implodir pontes quando se pode erguê-las?

A falta de empatia na comunicação e o desejo dos infantes em ver derrotados seus opositores ideológicos leva a outra armadilha. O sujeito passa então a apenas se informar com o confortável e conviver unicamente com quem às suas opiniões acolhe. Para Susanne Langer, uma das grandes mulheres da filosofia moderna e autora de Filosofia em Nova Chave, de 1942, o tratamento de um problema se inicia com sua primeira expressão como questionamento.  Ela diz que “a forma como uma pergunta é feita limita e dispõe como sua resposta, certa ou errada, deve ser dada”.

Nossos semelhantes poucas vezes nos colocam em dúvida e isso gradualmente engessa nossa maneira de ver o mundo. Com o costume de sustentações e corroborações consentidas, qualquer contestação parece afronta. O filósofo norte-americano John Dewey, por exemplo, escreveu em How We Think, de 1910, que a essência do pensamento é “manter o estado de dúvida”.

Ouvindo somente o agradável, provavelmente teremos sempre as mesmas convicções. O país se polarizou e nenhum dos lados espontaneamente escuta o outro. As ilhas se afastam e o estreito entre elas se converte em oceano. Como não sabemos como vivem as pessoas das outras ilhas, precisamos de um mecanismo para identificá-las. Manifesta-se aí a necessidade de adjetivação do outro.

Uma vez taxado com atributos pelo adversário, por mais destituído de autenticidade que seja o tal aspecto, a pessoa pode se apropriar daquilo para deixá-lo representar uma ofensa. É como arrancar a arma da mão do inimigo. Assim corintianos se assumem pobres maloqueiros e palmeirenses adotam o porco como mascote. Petistas reclamam Cuba como sua sede e tucanos incluem a coxinha em seu cardápio. O estudante da Poli se afasta do estudante da FFLCH. A FAU se distancia da FEA. O homofóbico fica mais homofóbico. O intolerante, mais intolerante.

Leandro Karnal, historiador e professor na Unicamp, trata a adjetivação como a interrupção do raciocínio. O adjetivo transfere um traço quase irremovível ao alvo. Despe-se a utilidade de compreender algo já rotulado, descrito, classificado, identificado.

Ninguém quer ser categorizado pelo que não considera ser. Surge o rancor, faz-se o discurso de ódio –este alimentado ainda pela falta de qualidade na discussão: o uso de argumentos ad hominem. Isto é, quando se busca atingir a pessoa do interlocutor e não seu raciocínio. Internautas o utilizam com frequência desmedida nos desentendimentos em redes sociais, mesmo quando acreditam se notabilizar por sua intelecção.

Os debates nos centros acadêmicos proliferam esses hábitos pouco saudáveis. A busca por um panfleto de propaganda de chapa sem ofensas dirigidas a qualquer um pode se mostrar longeva. Assembleias estudantis cujos discursos não se exibam preocupados com depreciações precipitadas são igualmente inusitadas. Os alunos da USP, conhecidos por seu engajamento público, tendem a se ausentar da discussão política em suas próprias entidades, saturada pelo apetite voraz da capitulação da ideologia alheia.

Invariavelmente, buscar contrapontos é obrigação do ofício do jornalista. É seu dever estabelecer a antinomia de ideias, o confronto saudável entre debatedores, ainda que diametralmente opostos. A reportagem se torna pouco compreensiva  e elucidativa tendo qualquer uma das partes suprimida.

Não estamos, de fato, nos ouvindo. Se Dilma renunciasse  em pronunciamento ao vivo pela TV, poucos perceberiam. Estariam todos bradando às varandas, inebriados pelo som das panelas.

Guilherme Caetano