Alunos de arquitetura criam página de denúncia on-line

Segundo eles, grade curricular e atitude de professores podem causar até problemas de saúde

Com mais de 20.000 curtidas em menos de um mês de existência, a página criada por estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU – USP), “FAU não é normal” começou fora da internet: foram pregados cartazes pela faculdade, com frases como “Ter crises de depressão por ser sobrecarregado #NÃOÉNORMAL”. Com a repercussão, as denúncias foram parar no Facebook.

Uma estudante* de arquitetura diz que enfrentou a depressão nos primeiros anos de faculdade, o que a obrigou a trancar o curso. “A carga é muito desgastante, principalmente para alguém que está acostumado a ir para a escola, voltar e pronto. Eu estava acostumada a ser uma excelente aluna e, de repente, passei a não dar conta de fazer todos os trabalhos com qualidade porque não dava tempo”, relata. “Primeiro decidi trancar algumas matérias, mas eu não conseguia levantar da cama (literalmente) nem para fazer as que restaram. Hoje, vendo tantos relatos de alunos com sintomas tão parecidos com os que eu tinha, percebi que a faculdade teve grande influência”, conta. Ela voltou para a FAU e, hoje, está quase concluindo o curso, mesmo ainda tendo algumas crises de desespero e choro.

 

Precisamos falar sobre a FAU; Foto: Ana Luisa Moraes
Precisamos falar sobre a FAU; Foto: Ana Luisa Moraes
Ter insônia por questões acadêmicas (Foto: Ana Luisa Moraes)
Ter insônia por questões acadêmicas (Foto: Ana Luisa Moraes)
Brigar com os amigos por causa de trabalho (Foto: Ana Luisa Moraes)
Brigar com os amigos por causa de trabalho (Foto: Ana Luisa Moraes)

“Temos que discutir sobre essa página, porque tem muita coisa que não é normal mesmo”, diz o professor da FAU, Reginaldo Ronconi. “O nosso número de horas é bem maior que o das faculdades particulares, temos período integral. Existe até uma discussão para saber se a duração do curso deve passar de cinco para seis anos, sem aumentar a carga horária”. Os dados coletados em pesquisa realizada pelos próprios alunos da FAU, para um trabalho de estatística, apontam que, em média, os estudantes da faculdade só têm três horas livres durante o dia. É nesse horário que os alunos, supostamente, devem fazer trabalhos, atividades extracurriculares e cuidar da vida pessoal. Entre os entrevistados, mais da metade deixou de cursar alguma matéria no período ideal. Desses, quase 90% justificam o trancamento das disciplinas por falta de tempo livre.

Um outro aluno*, que cursou os 40 créditos do período ideal no semestre passado, relata que desenvolveu reação física ao estresse: “Devido ao acúmulo de trabalhos, que exigem muito tempo de dedicação fora do período de aula, passei a ter cólicas abdominais agonizantes várias vezes por semana”. Ele diz que, em determinadas épocas, passava até 34 horas seguidas fazendo todos os trabalhos, o que agravou a sua condição. Essa é uma reclamação constante dos alunos: que os professores não conversam entre si para combinarem diferentes datas de entrega de trabalhos, o que faz com que o dia, já curto, se torne ainda mais caótico. “Nunca tive essas dores em um momento que não fossem as semanas de entregas na faculdade. Agora tenho me regrado mais, de modo a não ceder minha qualidade de vida para atender às demandas absurdas dos professores”. O estudante endossa as estatísticas da pesquisa, que apontam que mais da metade dos alunos faltam às aulas nas semanas de entrega para conseguirem fazer todas as atividades propostas. “Muitas vezes é necessário perder aulas de outros departamentos para dar conta de executar tudo, ou porque não estão em condições de frequentar nenhuma aula depois de ter passado uma noite em claro”.

 

Uma estudante* diz que mesmo que a faculdade seja pública, estudar na FAU sai bem caro: “Temos muitos gastos com impressão, maquetes e outros materiais”. Trabalhar seria uma opção, mas os alunos dizem que é praticamente impossível fazer o curso e ter um emprego ao mesmo tempo. “Para trabalhar você tem que abandonar matérias, o que implica em não se formar em cinco anos”. Ela ainda relata um caso ocorrido quando cursava o segundo ano: “por causa de uma disciplina o nível de estresse foi tão alto que precisei de ajuda médica. Na apresentação final praticamente todos os membros do grupo estavam doentes, sendo que um deles foi parar no hospital”.

Não ter tempo para estudar o que quer (Foto: Ana Luisa Moraes)
Não ter tempo para estudar o que quer (Foto: Ana Luisa Moraes)

Estudar em universidade fora do país mostrou para uma aluna* algumas disparidades. Ela fez um intercâmbio para os Estados Unidos através do programa Ciência sem Fronteiras. “Percebi como a grade da FAU é irreal, mesmo cursando uma faculdade integral nos EUA. Lá, eu conseguia fazer os trabalhos de fato, me exercitar, me alimentar direito”. Uma das grandes diferenças, como ela aponta, é o andamento mais gradual das matérias, com várias pequenas entregas ao longo do semestre. “Isso evita as sobrecargas em apenas dois momentos do período”, comenta.

A página FAU não é normal já inspirou a criação de outras, por outros institutos da USP, como a “Precisamos falar sobre a Vet USP”, em que são relatados casos similares na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP. “Estávamos insatisfeitos com o curso e com muitas atitudes anti-éticas de alguns professores. Os relatos foram se somando e aí conhecemos a página da FAU, e percebemos que alguns casos eram parecidos”, dizem os criadores, que não se identificaram.

Reginaldo Ronconi diz que enxerga toda essa mobilização dos alunos como algo positivo: “Pode ser um condutor para a discussão sobre uma questão mais profunda que acontece em sala de aula”. Ele explica que questões como a alteração da grade do curso avançam lentamente, mas que já existe um processo de revisão do projeto político pedagógico. “Achei o nome da página genial, porque é realmente isso que acontece, nós vamos normatizando tudo. A rotina é um amortecedor do olhar crítico, tanto para alunos quando para professores”, finaliza. Quando procurada pelo Jornal do Campus, a Direção da FAU disse que não iria se manifestar.

*Os nomes foram ocultados para preservar a identidade dos alunos