Leitura de “Quarto de Empregada” levanta discussão da censura

Espetáculo de 1958, proibido na ditadura, terá sua leitura dramáica no Sesc São Paulo

Obras do arquivo Miroel Silveira
Obras do arquivo Miroel Silveira (divulgação obcom)


Presente no acervo de obras censuradas no Estado de São Paulo do Arquivo Miroel Silveira, que hoje pertence à Escola de Comunicações a Artes da USP, a peça ‘Quarto de Empregada’ (1958), de Roberto Freire, terá sua leitura dramática realizada no próximo dia 21, no Sesc São Paulo.

Parte do projeto Censura em Cena, a peça foi vetada no seu ano de lançamento, acusada de deturpar a imagem da sociedade e da família brasileira da época. A obra retrata a vida duas empregadas domésticas, Rosa, que é negra, e Suely, que é branca. As duas dividem um quarto onde dormem na casa em que trabalham. O espaço compartilhado pelas personagens é a forma utilizada pelo autor para retratar a luta de classes.

Dentre as questões de montagem de uma obra que até então era desconhecida pelo grande público, a peça retoma uma outra pertinente para a sociedade atual: a censura. A professora Maria Cristina Castilho Costa, coordenadora do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom), explicou, como uma das convidadas para debater a peça em sua apresentação, que a temática da obra é ainda atual.

Para Maria Cristina, os diálogos de uma empregada negra com uma jovem empregada branca e cheia de romantismo podem gerar a reflexão da atual condição do trabalho no Brasil que ainda carrega traços da tradição escravocrata. “Eu ainda acho que a empregada doméstica é uma instituição no país. A sociedade gira em torno desses trabalhos, não são criadas outras alternativas, como, por exemplo, a criação de creches em empresas”, diz a professora.

Além disso, ela acredita que a obra foi censurada porque colocava no palco personagens do proletariado, afirmando que “o teatro nasceu branco e de elite, no Brasil”. Demorou muito para o público do século XX aceitar essas personagens no centro da cena.

(divulgação obcom)
Leitura dramática da peça “Perdoa-me por traíres” de Nelson Rodrigues, que também foi apresentada no projeto Censura em Cena (divulgação obcom)

O Arquivo O Arquivo Miroel Silveira conta com mais de 6 mil títulos no acervo e é parte hoje do estudo do Obcom. O conjunto reúne obras censuradas entre os anos de 1930 e 1970 e contém todos os trâmites dos processos de censura, além das obras completas. Das mais de 6 mil peças, cerca de 40 tiveram censura completa. Maria Cristina explica que seu grupo de estudo percebeu que as peças vetadas caíram no limbo e, mesmo depois de liberadas, ficaram desconhecidas pelo público. A intenção com o projeto Censura em Cena é trazer as obras para a atualidade e discutir os motivos que levaram à  censura.

A primeira ideia é resgatar autores conhecidos que foram censurados. O grupo de estudos quer permitir que as pessoas conheçam as obras. “Em agosto teremos uma peça de Augusto Boal, autor que nem seu próprio filho conhecia sua obra”. “Queremos resgatar e debater a censura hoje, pois temos certeza que a censura é perversa”, diz Maria Cristina. Para a professora, a tradição tende a minimizar e a naturalizar a censura, mas essa ação provoca a autocensura, a desistência,  o silenciamento e acaba empobrecendo o público e as artes.

Uma das observações feitas pelo estudo do arquivo mostra que o público é conivente com a censura. Alguns arquivos mostravam que o Estado quis liberar algumas obras em determinados períodos. Mas uma instituição ou associação imedia a ação. Isso ocorria e ainda ocorre pois, na perspectiva de Maria Cristina, o Brasil tem uma cultura autoritária e antidemocrática. “A nossa cultura é a cultura de ‘eu sei o que você deve ler e deve ouvir’ e ninguém reage. É uma tradição censória que começa em casa quando as pessoas preferem proibir do que discutir, não mostrar do que justificar, e isso acaba naturalizando a ação”, finaliza a professora.

A Censura Maria Cristina defende que antes de pensarmos a censura, é preciso pensá-la de duas formas. A censura clássica, que é feita pelo Estado e, geralmente, ocorre de forma prévia. No Brasil, esse formato de censura se destacou no período do governo Vargas e seguiu até a Constituição de 1988. Porém, a partir deste momento, novas formas de censura indireta começaram a surgir, como a censura econômica. “Nos anos 1940, 1950 um grupo amador conseguia sobreviver e encenar sua peça, fosse em uma igreja, em um clube ou um sindicato, e hoje não se pode”, afirma a professora.

Atualmente, apresentar uma peça de teatro é muito mais caro. Gastos com produção, palco, recursos técnicos, cenografia entre outros, também geram um tipo de censura, de acordo com Maria Cristina. Neste caso, as obras ficam reféns das leis de incentivo, estando à mercê de departamentos de marketing de empresas que irão dizer o que vai e o que não vai para o palco. “Por isso temos um cenário em que predominam comédias e musicais”, analisa.

Outra forma de censura é a outorgada, que é a censura judicial. Como exemplo desse tipo, a professora cita o da peça Edifício London, de Lucas Arantes. A obra retrata o caso ocorrido com a garota Isabella Nardoni, porém sua família se sentiu exposta e entrou com ação contra o dramaturgo. Além de proibida de exibição, a peça foi submetida a sigilo. Outros processos contribuem para a cultura de censura no país, como livros e biografias que não foram autorizadas, associações que se organizam para vetar uma obra e classificação indicativa – que pode implicar em inviabilidade econômica da obra, pois acaba dificultando sua bilheteria. Maria Cristina comenta que um sintoma dessa cultura é o fato de que não temos nenhuma obra de ficção falando do impeachment do presidente Collor, por exemplo. Não há nenhuma obra explicando o que ocorreu naquele período, não se tem o debate que a arte possibilita.

Jeferson Gonçalves