Pelo telefone, pela avenida e pelo campus

Em tempos de música digital com hits efêmeros, o samba completa 100 anos com forte presença na Universidade.

O samba abre caminho na passarela da formação da identidade cultural brasileira a partir de 1916. Composto por negros nos morros, pelas camadas mais pobres, pelos brancos letrados, ele foi criando raízes por onde passou. Além de ser estudado nas salas de aula, o gênero também é tocado por vários grupos na universidade, seja nas rodas ou nas baterias de samba das faculdades.

Músicas de ícones do samba como Cartola, Beth Carvalho, Dona Ivone Lara e Noel Rosa  são conhecidos pelos jovens. (Ilustração: Guilherme Caetano)
Músicas de ícones do samba como Cartola, Beth Carvalho, Dona Ivone Lara e Noel Rosa são conhecidos pelos jovens. (Ilustração: Guilherme Caetano)

Na década de 20, o ponto de encontro dos jovens músicos cariocas era a casa de Tia Ciata, cozinheira baiana, mãe de santo e símbolo da resistência da cultura negra no Rio de Janeiro. Lá, João da Baiana, Pixinguinha, Sinhô, Donga, entre outros, costumavam jogar versos nos saraus enquanto tocavam. Assim surgiu “Pelo Telefone” do percussionista Donga e do jornalista Mauro de Almeida, primeiro samba gravado na história da música brasileira. Ao longo do tempo, o gênero sofreu transformações harmônicas como a mudança de acentuação rítmica, permitindo que fosse mais “dançado” para desfilar. Ismael Silva, Bide e Marçal são os responsáveis pelo feito, além de terem criado a primeira escola de samba,  a “Deixa Falar”, em 1928 que depois virou a Estácio de Sá. Houve também a entrada de novos instrumentos como cuíca, surdo e tamborim.

Quem passa pela avenida da Raia ou pela praça do Relógio consegue ouvir a batucada que as baterias universitárias diariamente fazem. Só na USP, existem mais de 20 grupos formados por alunos que ensaiam para tocar nos jogos e nas competições técnicas de samba. O envolvimento das pessoas fez surgir grupo maiores com pessoas de faculdades diferentes e até de fora da universidade como o Bloco da USP e o Batucada Samba Clube. Embora ambos não existam mais, eles deixaram heranças interessantes: o primeiro transformou-se no Cordão da USP que, seguindo a tradição, tem samba enredo e estandarte próprios, já o segundo virou o Balatubloco, bloco que desfilou pela primeira vez nas prévias carnavalescas deste ano com cerca de 250 ritmistas de 50 diferentes baterias. “Dentro dessas auto-organizações existem debates muito fundamentados sobre temas de resistência, como o machismo e a apropriação cultural. Não estou dizendo que é graças ao samba que esse diálogo existe, mas sim que, graças a organização em torno desse tema que essa discussão se dá nesses espaços”, acredita Marcelo Garcia, cofundador do Cordão da USP e batuqueiro. Ele acredita que as Baterias Universitárias da USP hoje deixaram de ser um mero espaço de batuque, assim como o samba nunca deixou de ser um símbolo de resistência política.

Há ainda diversas rodas de samba que acontecem no campus. Todas as primeiras segundas-feiras do mês tem samba na Psicologia e todas as quartas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Além das que acontecem esporadicamente na Pedagogia, na Física. Para Marcelo Moreno, aluno da FAU e frequentador da roda de samba, o encontro tem importância similar a de qualquer outro tipo de organização estudantil como atlética ou atividades extracurriculares, como  as festas. “Você tem contato com gente que as vezes não teria, aprende outros tipos e coisas que as aulas não oferecem”, afirma Moreno.

Na história da música brasileira destacam-se grandes sambistas que em algum momento vão influenciar ou já influenciou as pessoas que estão em contato com o gênero. Através das canções de Noel Rosa é possível conhecer o Rio de Janeiro dos anos 30, considerado, por isso, um dos maiores cronistas da época. Já Cartola seguia um caminho mais subjetivo, ligado às questões amorosas em suas composições. O sambista e sua mulher, Zica, eram donos do Zicartola, restaurante da Rua da Carioca que se tornou reduto dos boêmios, intelectuais e sambistas entre 1963 e 1965. Dona Ivone Lara aparece na história do samba como grande guardiã dessa tradição secular, assim como Clementina de Jesus também foi. Por fim, a madrinha do samba, Beth Carvalho que com seu cavaco e voz imponente continua encantando com suas interpretações.

A batucada brasileira continua viva nos morros, nos palcos, nos cinemas, nas ruas, nos fones de ouvidos, nos serviços de streaming e na Universidade. “Os jovens encontraram uma maneira de resistência cultural que é resgatar grandes sambas, diante de um mercado, que é avassalador, no sentido de desenraizar, de alienar musical e culturalmente as pessoas”, defende Ivan Vilela, professor da Música e renomado violeiro caipira. Conhecer um pouco a história do samba é descobrir o cotidiano do Rio de Janeiro nas décadas 30 e 40, constatar a deselegância nem tão discreta assim das garotas paulistanas e usar a música como instrumento de resistência e luta por causas que sejam tão parecidas com as de 100 anos atrás.

Gabriela Sarmento