Estupro se retroalimenta de ódios e valores

Há exatos vinte anos, a professora Ana Lúcia Pastore finalizava o livro Estupro: crime ou cortesia?, em parceria com outras duas pesquisadoras, sobre estupro e o crime no âmbito jurídico. Atualmente, Pastore é Advogada, professora e chefe do Departamento de Antropologia da USP, e coordenadora do Núcleo de Antropologia do Direito da USP (NADIR). Integra, ainda, o em Violência, Democracia e Direitos do Núcleo de Estudos da Violência da USP e é membro da rede Não Cala. Às vésperas de reeditar seu livro, ela lamenta que poucas conclusões negativas sobre o mesmo tenham mudado.

JC – O que é cultura do estupro? O que a senhora pensa sobre este conceito?

Como antropóloga, vale a pena destacar que o conceito de cultura é super importante para a área, e é polêmico. A ideia de que hábitos, costumes, e a língua são o que tornam um grupo identificado é o que a gente pode chamar de cultura. Ao longo do século XX veio a ideia de que realmente não existe nada ou praticamente nada de natural, ou nada que aconteça por puro impulso genético no ser humano. Tudo é construído na vida em sociedade. E, portanto, cultura é isto que dá sentido a todo e qualquer ato humano em relação com outros seres humanos.

Essa produção de sentidos é múltipla dentro de uma mesma sociedade, dos seus subgrupos. Então, cultura não é um conceito que unifica. Ele até multiplica muitas coisas. Falar em cultura do estupro pode levar ao engano de pensar que existe um conjunto muito fixo de comportamentos, de hábitos, ligados ao estupro. E eu acho que justamente não é bem assim. O que a gente pode afirmar é que, claro, em uma sociedade de tradição patriarcal e machista como a brasileira, existem padrões que de certa forma sustentam qualquer violência de gênero. Mas isso é algo que permeia os vários grupos sociais de maneiras muito peculiares. Então não há uma cultura. Há coisas que perpassam a sociedade e que não tem a ver só com o estupro.

Foi publicado recentemente um desenho (feito pela Anistia Internacional da Espanha) que é um iceberg da violência. Este desenho mostra que o feminicídio e o estupro, ou seja, as formas mais violentas, são só a ponta do iceberg. E aquilo que não se vê e sustentam o iceberg é muito maior e muito mais múltiplo, e que vai desde a propaganda que torna a mulher totalmente objetificada, até as ofensas verbais. Ou seja, é mais interessante pensar mesmo o conceito de violência para pensar o estupro. Como uma espécie de circuito que se retroalimenta de ódios, de uma série de valores, que vão desde o machismo até o tema da violência doméstica.

No caso dessa moça do Rio de Janeiro, ele é excepcional. A maioria dos estupros acontece envolvendo só o agressor e a vítima, no ambiente doméstico. Ali parece que havia conhecidos (e isso está dentro de uma tendência que se observa na maior parte dos estupros), mas a maioria dos casos sequer chega à polícia, muito menos à mídia, não vai para as redes sociais. Eu acho que pensar em cultura do estupro é meio empobrecedor. Acho que a gente tem que pensar no conceito de violência e na ideia de um circuito que se retroalimenta de muitas variáveis, e que por isso não pode ser resolvido com facilidade, com respostas punitivistas. Aumentar as penas, colocar em questão a pena de morte, são soluções muito simplistas.

Há semelhança entre os casos de estupro na Índia e no Brasil?

Existe um relatório da Organização Panamericana de Saúde (OPAS) e também da Organização Mundial de Saúde (OMS) chamado Relatório mundial sobre violência e saúde, publicado em 2002, que fez uma pesquisa comparativa internacional sobre os vários tipos de violência. Embora fosse difícil pesquisar casos de estupro (por causa do que chamamos de cifra negra, que é a diferença entre o que realmente ocorre e o que é publicizado, mesmo que só informalmente. O que chega a ser judicializado é ainda muito menor do que chega ao público. Este relatório aponta algumas semelhanças entre os casos de estupro do mundo inteiro. A questão do estupro envolver pessoas conhecidas, do estuprador não ser um monstro, de não ser patológico. Muitas vezes é alguém que circula normalmente nos ambientes de trabalho, de escola. Essas são algumas tendências mundiais. E ai também de alguma forma mais polêmica que apontam as principais vítimas de esturpo. No caso das mulheres, as mulheres mais jovens, mulheres que já foram vítimas de violência sexual tendem a se sobrevitimizar. E há estudos sobre os agressores, ainda em menor, número. Mas pouco se estuda sobre isso. Ou seja, há uma carência muito grande de pesquisas nessa área.

No último domingo do mês passado (29/05), o Fantástico entrevistou a vítima do estupro coletivo, no Rio de Janeiro. Essa exposição é necessária? Até que ponto expor a menina na imprensa é positivo?

Não se pode confundir a exposição dos fatos com o uso indevido da imagem dos envolvidos no fato. Uma coisa é você tornar público, sem dar nomes a ninguém, o fato. Tornar público e inserir no debate público, e expor a identidade dos envolvidos é totalmente indevido. No caso da vítima, isso a sobrevitimiza, porque ela fica mais fragilizada. E também interfere nas investigações, vai interferir futuramente em todo o processo judicial. E o mesmo vale para o suspeito. Há uma tendência de querer punir, até moralmente o suspeito, mas quando ele é ainda suspeito somente. Ou seja, não se tem ainda certeza quem de fato se envolveu, como se envolveu. Há uma relação entre mídia e criminalidade que é superimportante pensar.

E as redes sociais?

Neste caso específico trouxe algo excepcional. Porque ela trouxe imagens do estupro. Como a maioria dos casos, como apontado no relatório, acontecem em lugares privados. Tendo acontecido desta forma, houve repercussões também muito positivas no sentido de criar um debate e trazer à cena várias opiniões, especialmente nas redes sociais. Porque a grande mídia é sempre tendenciosa, publica as coisas de modo muito mais estanque do que levanta dúvidas. Mas o debate público é sempre positivo, desde que não exponha as pessoas.

A USP ainda age contra o estupro?

Acho que a universidade não está preparada para processar (no sentido pleno da palavra), para dar conta das questões de gênero. A USP, de fato, está muito aquém de todo o movimento histórico feminista. Praticamente não se discutia violência de gênero entre os componentes da comunidade. E isso começou a vir à tona de uma forma mais incisiva a partir de 2015, com a CPI das Universidades, os casos na medicina e de outras unidades.

Uma universidade deste porte teria que ter uma estrutura há muito tempo, atrelado inclusive aos seus serviços de saúde (ao próprio HU, ao Instituto de Psicologia). Deveria ter áreas para dar suporte às vítimas de violência. Isso é uma tradição nos Estados unidos. Que saiu à frente nos anos 1970, visibilizando os estupros que aconteciam e ainda acontecem nos campi. Foi neste contexto que surgiu a questão da segurança nos campi, como torná-los mais seguros, e veio todo um debate de como ao mesmo tempo é possível as pessoas denunciarem sem se expor. Ou seja, isso não é de hoje. A USP está há anos luz de distância.

Parece que as medidas são sempre informais, e depois a universidade, a reitoria e as diretorias entram em contato com os casos…

Sim, primeiro porque o modelo de sindicância está totalmente errado para apurar este tipo de situação. Aliás, para apurar qualquer situação. Sindicância não funciona da maneira como está prevista. Pois ela não fornece material suficiente, o tipo de contato adequado para se acompanhar casos de conflito.

Pelo fato do estupro ser um crime, a universidade não deve e nem pude apurar o caso sozinha. Isso é responsabilidade do poder público, da polícia e depois do poder judiciário. O que a universidade pode e deve é acionar devidamente o poder público e o sistema de saúde, e deve depois acompanhar internamente a situação da vítima e do suposto agressor, até que ele seja condenado ou absolvido.

E eu insisto que, embora alguns coletivos feministas mais radicais digam que é preciso publicizar o nome do agressor, eu acho que não. Até se ter certeza, não se pode fazer isso porque se você faz alarde que o aluno é estuprador, isso vai marca-lo para o resto da vida. E se ele for inocente, ele não tira essa marca. Quer dizer, é algo que não pode ser feito em nome dos mesmos direitos humanos que resguardam a vítima. E a universidade tem esse papel, de preservar moralmente os envolvidos, não importa se vítima ou agressor.

Devemos debater a violência na escola?

No ensino público, é indiscutível que gênero é um tema que faz parte do sistema educacional, porque envolve comportamento, postura, vida social. Então deve fazer parte do currículo das escolas públicas questões de gênero, desde o ensino fundamental, incluindo os pais das crianças. Mas quem participa desses debates devem ser profissionais que não vão lá meramente para militar a favor ou contra alguma coisa. Eles devem ser profissionais de alto gabarito, que fazem pesquisa na área, e que vão levar dúvidas e questões para o debate. Vão inclusive abrir um leque de posturas, para que as pessoas tenham noção de que tudo que está ali envolvido. E acho que a religião é algo que tem um papel que não pode ter no ensino público. O ensino público tem que ser laico. Isso está na lei, na Constituição. Mesmo nas escolas particulares e religiosas. Elas também têm que respeitar os planos nacionais de educação, e de direitos humanos. Porque são diretrizes, e não podem, em nome de uma crença religiosa, desrespeitar algo que está acima de qualquer crença num país a princípio laico. Porque a gente sabe que não é. Acho que é esse o tipo de debate que tem que ser levado. Principalmente as dúvidas, e não certezas. Se não vira uma espécie também de pregação. As pessoas têm que ter dúvidas.

Há vinte anos, eu fiz uma pesquisa sobre estupro com a professora Sílvia Pimentel, da PUC, e a pesquisadora Valéria Pandjiarjian. O trabalho resultou em um livro no qual abordamos a visão do judiciário sobre o tema. O título foi inspirado no sobrenome Cortês e remete a um advogado que há anos defendeu um homem acusado de estupro. O defensor usava o argumento de que a vítima era uma mulher “de vida fácil, sem nenhuma moral”. Então o que o estuprador fez foi nada menos que uma “cortesia”. E por isso o título é: Estupro, crime ou cortesia?

O que nós mais verificamos foi que na maior parte dos casos analisados, as vítimas também foram julgadas moralmente. Quando isto não deveria importar. Se ela foi violentada sexualmente, não importa se ela é prostituta, professora universitária, ou freira. Ela não quis e foi forçada a algo. Essa é a principal conclusão do livro e nós tememos reeditá-lo  com o mesmo título. Porque isso deve continuar sendo verdade.

Por Carolina Pulice