Mergulho cego com braçadas de Vitória

Caloura conta como foi da piscina em Jacareí ao maior evento de natação paralímpica do Brasil
Vitória compete com seus óculos de natação vedados com fita isolante para garantir a ausência de luz (Foto: Daniel Tubone)
Vitória compete com seus óculos de natação vedados com fita isolante para garantir a ausência de luz (Foto: Daniel Tubone)

No último sábado (18) aconteceu a competição de natação da Copa USP na Escola de Educação Física e Esportes (Eefe), quando caíram na piscina cerca de 300 atletas de diversas faculdades da Universidade de São Paulo. Entre a equipe da Faculdade de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional (Fofito) estava Vitória Maria Souza Costa, de 18 anos, natural de Jacareí. Caloura do curso de Terapia Ocupacional (TO), Vitória estreou pela Faculdade e foi a única atleta cega a participar do evento.

Acostumada a competir profissionalmente desde os 14 anos, a estudante sentiu a diferença da competição no esporte universitário, mas ficou satisfeita com sua estreia. “É diferente pela questão da cobrança, apesar disto temos que nadar fazendo o melhor. Não achei que meus tempos foram tão legais. Tem dias que não são tão bons, mas é preciso continuar treinando sempre”.

Filha de Peixe

Sua paixão pelo esporte é hereditária. Sua mãe, Jane Souza, é formada em Educação Física e leva os esportes sempre consigo. Ainda em Jacareí, foi a mãe que a colocou  na natação, com menos de 2 anos. “Desde pequena ela me colocou na natação. Quando eu fiquei doente, tive retinoblastoma — que foi quando eu perdi a visão — tive que parar”, conta. O retinoblastoma, que deixou a estudante completamente cega, é um tumor maligno que se origina na retina e atinge principalmente crianças abaixo de 3 anos. Após a doença, ela ficou afastada das piscinas até os 8 anos de idade, quando novamente sua mãe a colocou numa escola de natação. “Eu a obriguei a aprender um pouco porque a gente tinha uma piscina no condomínio, então eu tinha medo das crianças a jogarem na água e ela não saber sair”, explica Jane.

Apesar de atualmente não se imaginar sem entrar na água pelo menos uma vez por semana, o começo foi mais conturbado. O tratamento das professoras e dos outros alunos acabou desestimulando a atleta que desistiu das aulas aos 10 anos. “Eu fazia aula quando era nova numa escola muito pequena, que não tinha muito preparo. Eu treinava com as crianças que eram convencionais e não me sentia muito incluída nas brincadeiras”.

O afastamento do nado não durou muito tempo e, com 13 anos, mais uma vez outra pessoa a levou de volta para a piscina. Dessa vez, a vizinha de condomínio da família também era a então coordenadora da equipe de natação paralímpica de Jacareí e encontrou a estudante nadando na piscina do prédio e a chamou para integrar a equipe. Transformando a natação em uma carreira, a paixão pelo esporte começou a crescer. “Comecei a competir em Jacareí e voltou a vontade de nadar. Porque eu estava competindo, tinha aquela motivação, tinha um objetivo”. Além disso, os antigos problemas com as pessoas que aprenderá a nadar ficaram para trás ao conhecer sua nova equipe. “Quando fui para equipe paralímpica eu conheci pessoas com qualquer tipo de deficiência e treinávamos todos juntos. Todos se uniram e tenho amizade com eles até hoje”, conta Vitória.

A carreira em Jacareí durou pouco. Após se formar no ensino fundamental, ela decidiu se mudar para a casa de sua tia, em São Paulo. A vontade de conhecer a cidade e ter um maior número de oportunidades foi decisivo para a escolha. “Eu já estava querendo muito vir para cá porque eu tinha sonho de fazer teatro, mas o treino e o teatro eram no mesmo horário e tive que escolher. Acho que foi uma das melhores escolhas continuar com a natação”. Apesar da distância, Jane também acredita que esta foi a melhor escolha para sua filha. “No interior a aceitação é mais difícil. Aqui em São Paulo parece mais fácil porque o Brasil inteiro está aqui. É mais fácil de andar no ônibus aqui, eles têm mais paciência para esperar ela entrar”, relata.

A primeira competição foi aos 14 anos, no maior campeonato paralímpico de natação, o Circuito Caixa, realizado em São Paulo. Desde então participou de campeonatos regionais e nas paralimpíadas escolares, representando São Paulo na fase nacional da competição. Atualmente, Vitória tenta conciliar sua vida de treinos no Clube dos Paraplégicos de São Paulo (CPSP) e os estudos na USP. Seu próximo grande compromisso será no fim de semana dos dias 25 e 26, no próprio Circuito Caixa, que será realizado no novo Centro Paralímpico, em São Paulo.

Copa USP

Uma hora antes de se iniciarem as provas, a aluna já estava dentro da água conhecendo a piscina e treinando com seu técnico Thiago Santos. Vitória tem dois companheiros em suas competições de natação: seus óculos e o Tapper. O Tapper é um bastão com um bola de tênis presa na ponta que é manuseado por seu técnico encostando nas costas da nadadora para avisar quando a borda da piscina está próxima.

“Ela já havia treinado comigo em alguns treinos da Fofito, porém sem o Tapper. Tive o primeiro contato com ele no sábado mesmo. Demoramos um pouco pra encaixar os momentos certos do toque, mas no fim deu tudo certo”, conta o técnico.

E seus óculos também tem uma diferença. Na natação Paralímpica há 14 classes que diferenciam as deficiências e garantem que os atletas disputem apenas entre os com a mesma deficiência. Por ser da categoria S11 (cego total), as lentes são cobertas por fita isolante para impedir a entrada de luminosidade. “Tem pessoas que são S11 que enxergam luz, então temos que deixar os óculos pretos para não verem nada”.

Sob os olhos de sua mãe, Vitória participou de quatro provas no evento: 100m peito, 100m livre, 100m costas e 100m medley. Apesar de ter tido tempos menores do que está acostumada, disse estar feliz de poder ter entrado na água por sua nova faculdade.

Cidade Universitária

Mesmo com apenas seis meses na Universidade, Vitória diz que o curso de TO está transformando sua vida. “Acho que foi como a escolha da natação. Eu decidi por isto e acabou sendo perfeito para mim. Eu me encontrei neste curso, principalmente quando vou descobrindo a quantidade de coisas que posso fazer e áreas que posso atuar”.

O ativismo no curso não se limitou às salas de aula ou às piscinas, mas também quando os estudantes de seu curso entrarem em greve. “Estou participando das atividades da greve, indo em reuniões com docentes — não só da TO —, aumentando o dialogo com a medicina, enviamos uma carta agora pro diretor da medicina para ele assinar com algumas necessidades do departamento e estamos participando dos atos unificados”.

Além dos problemas em seu departamento, a caloura, que ainda não conheceu outros alunos com deficiências na Universidade, também vê a USP com problemas de acessibilidade e não enxerga movimentos para que aconteça esta melhora.

Paralimpíadas

Assim como o sonho de qualquer atleta, Vitória também carrega consigo a vontade de representar seu país na principal competição da modalidade. Durante os anos que antecederam as Paralimpíadas do Rio, a nadadora tentou a classificação mas acabou não alcançando o índice necessário. “Principalmente a prova 100 metros peito, que é minha melhor prova, mas ainda falta muito para conseguir. Quero continuar nadando e competindo e arrumar tempo para treinar mais e tentar novamente” explica.

Mas se não foi possível dentro das águas, será nas ruas de Jacareí que a estudante participará das Paralímpiadas. Ela foi selecionada para carregar a tocha olímpica em sua passagem por Jacareí. “Vai ser dia 20 ou 21 de julho em Jacareí. É uma oportunidade incrível, eu não consegui me classificar para as Paralimpíadas, mas vou poder representar a minha cidade de alguma maneira”.

Ao falar do evento, Vitória não fica totalmente entusiasmada. Para ela ainda há muito a melhorar na elaboração e, principalmente, na divulgação das Paralimpíadas. “Muitas vezes o Brasil Paralímpico tem resultados melhores que o Olímpico. Mesmo assim não há a divulgação. É algo da sociedade, de olhar a deficiência com esta lente de superioridade — tratando como especial —; ou de inferior  — como se a pessoa não fosse conseguir”.

Por Daniel Tubone