Nós em nós: o estupro nosso de cada dia

A minha garganta tem nós. Escrevo para tentar me salvar da combustão interna: nas entrelinhas deste texto, choro, aperto os dentes, grito, bravejo, insulto a sociedade, chamo o nome de Deus. Meu Deus! Tamanha voz, porém, soa como uma mudez incapaz. Embaraço os dedos no cabelo em um sinal inconformado. Respiro fundo, contraio os olhos, levo um soco – o de hoje! – no âmago do meu sexo. O chuveiro ligado sinaliza, ainda no raiar de mais uma manhã, o segundo banho de água fria. O primeiro, pasme, tomei minutos antes, quando, vestida com uma camisola e debaixo das cobertas, senti-me mais nua do que ao adentrar o box do toalete. Um punhado masculino contra uma menina paira na manchete do dia: 33 homens estupraram uma garota em um morro carioca. Trin-ta-e-três. Separados em conjuntos de 24 horas, eles não cabem em um mês. E nessa rima pífia não cabe a minha revolta.

O meu estômago tem nós. Lanço o celular, através do qual li a notícia, na cama. Três dezenas mais três: o primeiro homem me faz erguer as sobrancelhas; o segundo me deixa com o olhar atento; o terceiro empurra o meu abdômen; por conta do quarto, agarro o lençol; o quinto bate a porta, fechando-a; o sexto arrepia os meus braços; o sétimo joga as minhas costas na cabeceira; o oitavo comprime a minha cintura; o nono me dá tremedeira nas mãos; o décimo deposita uma palma na minha coxa; o décimo primeiro, descalço, livra-se da camiseta; o décimo segundo é o motivo dos meus pés gelarem; o décimo terceiro extrai os cobertores que, outrora, eram proteção; o décimo quarto liga uma câmera para registrar tudo; o décimo quinto acha divertido o pânico impresso em meu rosto; o décimo sexto tira o cinto; com o décimo sétimo, engoli a saliva a seco; o décimo oitavo desabotoa a calça, removendo-a; o décimo nono me deita no colchão; o vigésimo cresce em cima de mim; o vigésimo primeiro dispara o meu coração; o vigésimo segundo me manda calar a boca; o vigésimo terceiro me beija; o vigésimo quarto rasga a minha roupa; o vigésimo quinto retira o meu sutiã; para o vigésimo sexto, imploro piedade, em vão; o vigésimo sétimo apalpa os meus seios brutalmente; o vigésimo oitavo não traja mais cueca; o vigésimo nono abaixa a minha calcinha; o trigésimo toca a minha vagina; o trigésimo primeiro contempla, com sadismo, as minhas lágrimas; o trigésimo segundo engatilha o pênis; o trigésimo terceiro me estupra. Ai!

O meu útero tem nós. Escorre sangue. Estou toda tingida de vermelho escarlate. Sangro. Não, não fui eu quem, fisicamente, foi violentada. Ainda não. A cena descrita se passou em minha mente assim que soube do ocorrido com a moça no Rio de Janeiro. Aconteceu com ela. Pulsa em mim, no entanto, doses cavalares de empatia, um dos antídotos que combatem o abominável. Dotada desse sentimento e, por também ser mulher, com o peso do medo, coloco-me no lugar da adolescente de 16 anos. Aconteceu com ela, mas poderia ter sido eu. Isto é: fui eu. Eu sou a outra. No banho, ao tatear o meu corpo, sinto esse casulo me escapar por entre os dedos, mais escorregadio do que o sabonete que o limpa. Existem indivíduos que, amparados no machismo secular, acreditam que a minha casca seja deles. Em um organismo social em que a cultura do estupro encontra morada, materializo o pavor.

A minha pele tem nós. Seco o maior órgão que um humano possui, por meio do qual gozo as dores de ser do sexo tratado como alimento do gozo alheio. A toalha amacia um vergão em meu braço direito. Alívio: apenas uma picada de pernilongo. Contudo, ah!, poderia ser a marca de um “não” ignorado por um rapaz, não é? O relógio, agora, resgata-me da suposição que me molesta: o tempo ligeiro enfatiza a minha demora para a aula. Bebo o suco de laranja feito pela minha mãe, no momento em que a mesma dedilhava a cantiga de sempre: “cuidado, filha”. O aviso carrega a ciência inata de quem sabe que a rua guarda perigos, ainda mais para nós, mulheres. Os 33 homens estão nas redondezas: o vizinho do lar ao lado que volta e meia distribui piscadelas; o motorista que buzina para uma presa (somos reduzidas a isso) que caminha na calçada; o transeunte que espalha cantadas; o professor que se delicia com as curvas das alunas; o médico que examina demais, por assim dizer, as suas pacientes; o participante de reality show que se satisfaz com crianças; o primo munido de um arsenal de piadinhas machistas; o político que almeja dificultar o aborto em caso de estupro; o namorado que pouco se importa com o prazer da companheira; o pai de família que transa com a esposa a força. Quem compartilhou e achou graça no vídeo do estupro, não se engane, também é um deles. Eles são muitos. Nós, entretanto(s), podemos mais.

Os meus calcanhares têm nós. Aquiles, homem, não compreenderia. Os meus tendões não exalam fraqueza e, sim, medo. Medo que vira dor, dor que vira raiva: por vezes, vejo-me prostrada de modo impotente em face dos que jorram potência misógina pela próstata. Ergo-me, todavia, e retorno à luta. Vencida a fila, entro no circular. Ponteiros controlados: estou, ufa!, no horário. Durante o curto trajeto até a Cidade Universitária, no ônibus abarrotado, em pé no corredor, penso naqueles que, em seus comentários virtuais, culpabilizam a vítima do estupro coletivo: “ela vestia short ou saia?”, “se ela estivesse na escola, no trabalho, na igreja ou em casa, isso não aconteceria”, “quem mandou sair sozinha à noite”, entre outras crias discursivas do leque da desigualdade de gênero. Vestimentas, horas, locais, bebidas: esses elementos, meu caro, não violentam uma menina. Ponho as minhas sinapses a berrarem: estupradores estupram! E eles, atenção!, são os culpados! Eles e não a mulher! Ao passo que esse eco ressoava por todo o meu eu, notei uma protuberância encostada em mim: respaldado pela lotação do transporte público, um amontoado de músculos se deu o direito de me sarrar. Estanco o nojo e decido descer no próximo ponto. Licença para lá, licença para cá: sem olhar para trás, desembarco antes do que deveria. O percurso alterado, além da repugnância, rendeu-me um atraso.

O meu cérebro tem nós. Apesar de ser um ambiente afamado pela produção de conhecimento, a universidade não está imune de agressões várias: os estupros de alunas de Medicina são alguns dos diversos exemplos. Em um desses casos, a mera suspensão de seis meses do criminoso me enche de indignação. Há o estudante que classifica a Politécnica como “faculdade de homem”. O graduando de Psicologia que deslegitima a fala da colega, denominando-a de “louca”. O futuro educador físico que não enxerga, com seriedade e respeito, as atletas de sua escola. E o que dizer do garoto que embebeda as jovens nas festas? O orientador que menospreza o artigo da orientanda por ela ser mulher. Não se pode esquecer de quem propaga a questão binária: “a moça ou é bonita ou inteligente”, afirma um integrante da nata acadêmica. A última aula se encerra com o início do anoitecer. Os conteúdos aprendidos amorteceram, temporariamente, os meus tormentos. Deparar-me com o escuro, porém, dá margem para a tensão. Se o homem teme ter o celular roubado, a mulher receia ter o seu ser violado. Cogitei a hipótese de visitar uma amiga de outro instituto: a ideia foi esvaziada quando recordei de que passaria pela Rua do Matão. No almoço, apertei os passos para atravessar a Praça do Relógio, já que avistei um homem vindo em minha rota. Sonhei, ontem, que interrogava as paredes do CRUSP: quantas cenas abusivas elas acumulam na memória? Fui esperar o ônibus do outro lado da rua, desviando, pois, de um grupo masculino que abocanhava o ponto em que costumo pegar a condução. As minhas pernas balançam em sinal de desconforto. O circular chegou e, que sorte!, sentei-me próxima a uma garota: trocamos meios sorrisos que transbordaram desafogos inteiros.

A minha alma tem nós. A cada mulher vítima de violência, um pouco menos de sangue é bombeado pelo meu coração: poderia ter sido eu. Isto é: fui eu. Eu sou a outra. Sou a adolescente estuprada por 33 homens, os quais são produtos de uma sociedade que abriga o machismo em suas múltiplas manifestações – do “mulherzinha” como xingamento ao sexo não consensual. Sou a idosa de 80 anos, falecida em São Gonçalo, após estupro em sua casa. Sou a menina abusada no Piauí. Sou as uspianas diminuídas. Empatia. Por favor! 180 discado para denunciar: agressores na cadeia, onde, engraçado, eles se borram frente à possibilidade do estupro. Ao terminar a leitura deste texto, saiba, mais uma vida deve ter sido bolinada em terras canarinhas. Sou ela também. Finalizada a escrita, renasce a força necessária para enterrar a cultura do estupro antes que a maldita me enterre. Cansada estou da relativização de crimes, do silenciamento que me estanca as veias. Pessoa que sou, peço perdão ao poeta pela paráfrase: à parte isso, tenho em mim todas as mulheres do mundo. Por todo o meu eu, transporto nós; em cada nó meu ou seu, há nós, todas nós, mulheres.

Por Heloísa Iaconis