Sobre bustos, advogados e fantasmas

A não-estátua de Álvares de Azevedo e sua saga itinerante 

Faz exatamente uma década que a estátua de bronze do poeta Álvares de Azevedo testemunha diariamente o corre-corre da vida universitária residente no Largo São Francisco. Centenário, o monumento esculpido pelo artista visual Amedeo Zani passou a maior parte da vida habitando a Praça da República, onde foi instalado originalmente. O que poucos sabem é que a estátua, inquilina mais famosa da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, tem um passado obscuro – tal como gostaria de ter o poeta, de carne e osso, que a originou. Poucos sabem que ela foi protagonista de um crime (quase) perfeito. Poucos sabem, também, que Álvares Estátua, na verdade, não é Álvares.

O Mistério

Ainda que você, leitor, não seja dos que acumulam muitas certezas nesta vida, se for questionado sobre a quem pertence o busto instalado à frente da Faculdade de Direito da USP, deve afirmar com certa segurança: Álvares de Azevedo, o ultrarromântico, da “Escola dos Que Morrem Cedo”, que “foi poeta e amou na vida”. Até porque, é o que lá está escrito.

Mas quando certa manhã, a estátua de Álvares acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em seu pedestal metamorfoseada em uma herma de bronze de outro poeta: Fagundes Varela.

Isso mesmo: basta analisar os retratos dos dois escritores para constatar que o busto não pertence ao autor de “Lira dos Vinte Anos”, mas ao dono dos versos do Calvário. Reza a lenda que descoberta foi da escritora Lygia Fagundes Telles. Sua teoria está registrada no livro “A Disciplina do Amor”, publicado na década de 1980 pela editora Nova Fronteira. Mas a suspeita é de antes ainda de seu ingresso na mesma faculdade, nos anos 40, onde  foi disseminada a história. O Jornal do Campus disponibilizou, no site, retratos dos dois escritores e uma foto da estátua, para que você possa tirar suas conclusões.

Quando tudo começou

Ainda no século XIX, os expoentes da literatura romântica Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e Castro Alves frequentaram a Faculdade de Direito em São Paulo, assim como fariam tantas outras gerações de escritores nos séculos seguintes. Álvares de Azevedo não chegou a terminar o curso, porque morreu antes, mas deixou um imenso legado para a Universidade. Não à toa, é no centro da cidade, e por meio de nomes vinculados ao Largo, que surge a maioria das gráficas e da produção de periódicos nos primeiros cem anos de impressão no Brasil.

Em 1906, o Centro Acadêmico XI de Agosto decidiu homenagear o legado dos três grandes românticos que por lá passaram –  festejar ex-alunos célebres (e outros nem tanto) é um dos hobbies favoritos da tradicional Faculdade de Direito da USP.  Um seminário conduzido por Euclides da Cunha foi a maneira que os alunos encontraram de arrecadar o dinheiro necessário para viabilizar a encomenda: três hermas, uma de cada escritor. Mas, possivelmente por problemas no orçamento – nunca saberemos – ,a única estátua a ganhar corpo foi a de Álvares de Azevedo, instalada na Praça da República na mesma época. Os bustos de Castro Alves e Fagundes Varela, no entanto, são promessa (ou lenda) no Largo até hoje.

Desconhecidas as causas – um possível erro na execução, a famosa “estudantada”, ou mais uma das pirraças do Centro Acadêmico – a primeira estátua confeccionada era uma suposta réplica em bronze de Álvares de Azevedo. Olhando mais de perto, contudo, não há como ter dúvidas: aquele cavanhaque é de Fagundes. Os poetas foram mesmo trocados na maternidade de hermas.

Um crime perfeito

Como se já não fossem suficientes as mazelas do jovem ultrarromântico e de sua não-estátua, o monumento foi protagonista de mais uma trama de suspense. Em uma madrugada fria do ano de 2006, Álvaro – como carinhosamente é chamada a estátua por alguns alunos – foi surpreendido por um sequestro. Na calada da noite, durante um evento tradicional da Faculdade de Direito, um grupo de alunos do Centro Acadêmico XI de Agosto roubou o festejado busto de bronze. O ato criminoso foi impulsionado pela campanha “Volta, Álvares”, que exigia a transferência da estátua da Praça da República para as Arcadas, sob a justificativa de que seria uma salvação para seu estado de abandono.

Quatro diretores da gestão vigente decidiram, então, para a alegria da população franciscana, contratar um caminhão munck – uma espécie de ogro ou robô responsável por içar pesos pesados – para resgatar Álvares Estátua das garras da marginalidade. O plano não parava por aí: uma cerimônia solene seria armada durante a operação, e o busto acompanhado até o Largo na companhia de um cortejo de alunos.

O guindaste já estava prestes a envolver Álvaro tal como uma jiboia envolve sua presa – e o público vibrava, gritando seu nome – , quando, de repente, tudo foi interrompido pela Guarda Municipal Metropolitana, intrigada com a movimentação suspeita. Questionados, os diretores do Centro Acadêmico afirmaram com segurança – e a serenidade característica de quem rouba um busto de bronze – que o Departamento de Patrimônio Histórico havia autorizado a empreitada.

Insatisfeita com a ausência de um documento oficial que provasse a versão narrada pelos estudantes, a Guarda optou por acionar a Policia Militar. Em seguida, os autores da operação foram encaminhados à delegacia.

Enquanto três estudantes, sob a supervisão de policiais, ligavam para professores, mães e para quem mais pudesse os livrar de tamanha enrascada, o guindaste rangia com Álvares pendurado, aflito, imobilizado. Haja sofrimento para a réplica de tamanho sofredor.

Intenso e sobretudo insistente – como só mesmo o fã de um poeta ultrarromântico pode ser – , um dos manda-chuvas do XI, depois de uma fuga heróica da delegacia, retornou ao xilindró acompanhado de uma autorização falsificada. Não fosse uma ilustre companhia endossando a legitimidade do documento, perigava que estivessem lá até hoje, ainda mais petrificados do que o próprio Álvares Estátua. O tal aluno conseguiu contato com o organizador da Virada Cultural que ocorria na mesma noite. E, claro, ele era um ex-aluno da Faculdade, que  rapidamente foi sensibilizado pela história e enviou uma de suas funcionárias com a missão de engrossar o coro da dramaturgia franciscana.

Autorização expedida (falsificada), estátua içada, missão cumprida. Álvares foi instalado em segurança em seu novo endereço no centro da cidade e passou bem o final de semana.

Mas a segunda-feira chegou e, com ela, a ira dos orgãos públicos envolvidos. Reza a lenda que o diretor de Patrimônio Histórico da época entrou no gabinete do diretor da São Francisco, Eduardo Marchi, soltando fogo pelas ventas e ultrajando os tão célebres alunos da Faculdade de Direito. Marques desaprovou a abordagem intempestiva e, depois de um bate-boca acalorado (dizem as testemunhas), a causa ganhou ainda mais a simpatia do diretor. Uma sucessão impressionante de acontecimentos favoráveis a uma empreitada fadada ao fracasso.

O governador da época, Cláudio Lembo, não poderia ficar fora desta sopa de letras e gabinetes, e foi acionado. Redigiu um abaixo-assinado para que Álvares Estátua permanecesse junto aos alunos de direito. Convidou Gilberto Kassab, então prefeito, para entrar também no samba. O político se comprometeu a receber a diretoria do Centro Acadêmico para esclarecimentos, e acabou por assinar o decreto retroativo autorizando a transferência da estátua. Álvaro estava salvo. O Departamento de Patrimônio Histórico, nem tanto.

Do caminhão munck até o decreto retroativo foram 20 longos dias. Depois de tantos ânimos exaltados e cabelos em pé, ninguém mais se preocupou com questões supérfluas, talvez sem importância, como o roubo do Patrimônio Público ou a falsificação de uma autorização de transferência. O fato é que a paz voltou a reinar entre os alunos, diretores, estátuas e fantasmas do largo São Francisco.

Até o fechamento desta edição, o Jornal do Campus apurou que a metamorfose franciscana, o pot-pourri ultrarromântico, ou, simplesmente, o doce Álvares – que na verdade é Fagundes – permanecia nas Arcadas observando o movimento.

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Por Laura Capelhuchnik