O Globo não entende conceito de público

Ilustração: Natalie Majolo
Ilustração: Natalie Majolo

A grande mídia brasileira está mesmo na vanguarda do retrocesso. Em constante cabo de guerra com a democracia e os direitos sociais básicos, decidiu atacar, agora, as universidades públicas. Quase diariamente é possível encontrar alguma barbaridade sobre a “necessidade de acabar com o ensino gratuito” nos jornais da tríade Frias-Mesquita-Marinho. No dia 24 de julho, entretanto, o jornal “O Globo” aplicou um dos mais duros e torpes golpes de todo o processo, materializado no editorial intitulado “Crise força o fim do injusto ensino superior gratuito”. Paradoxal desde a primeira palavra, o texto evolui num emaranhado de ideias desconexas e informações mal interpretadas.

Logo no primeiro parágrafo, afirma que o Brasil passa pela mais grave crise fiscal da história republicana do país – assertiva polêmica à qual não me aterei – e que, nestes momentos, dada a inviabilidade de aumentar ou criar impostos, a lógica pede que se busque opções para financiar serviços prestados pelo Estado. O erro neste trecho é duplo.

Primeiramente, a ampliação de impostos de amplo espectro social pode estar de fato esgotada, mas o jornal simplesmente ignora a possibilidade da implementação de taxação proporcional de grandes fortunas, o que renderia cerca de 100 bilhões de reais ao país anualmente, segundo o ex-secretário de finanças de São Paulo, Amir Khair. Adiante, comete um erro conceitual. O caráter público de um serviço se determina por dois fatores siameses: subsídio e acesso. Para ser público, de fato, precisa garantir o acesso universal e para garantir o acesso, o serviço precisa estar alicerçado em fundo governamental. O eufemismo das “opções de financiamento” é usado para defender a privatização do que não pode deixar de ser coletivo.

Insistindo no erro, o Globo compara, de maneira simplista e dissimulada, os serviços públicos brasileiros aos dos países desenvolvidos, usando o caduco argumento de que a carga tributária brasileira é comparável à destas nações. Não sejamos enganados pela maneira como o jornal dos Marinho manobra os fatos. A tributação total brasileira, cerca de 35%, é de fato uma das mais altas do mundo. Países com sistemas públicos exemplares, como Noruega, Suécia e Dinamarca apresentam cargas tributárias não tão superiores, de 41%, 47% e 48% respectivamente.

Há de se levar em consideração, no entanto, o PIB per capita destes países: em ordem, 100, 60 e 59 mil dólares, contra os 11 mil dólares do brasileiro médio, segundo dados de 2014 do Banco Mundial. Isto significa que enquanto no Brasil um cidadão recolhe, em média, 3.850 dólares anuais, um norueguês, um sueco e um dinamarquês recolhem 41.000, 28.200 e 28.320 dólares por ano respectivamente. Esta análise simples, que não leva em consideração as diferenças sociais e políticas dos países, já é suficiente para refutar o maldoso argumento do Globo.

Peço aqui, de antemão, perdão por reproduzir um parágrafo inteiro do editorial: “Para combater uma crise nunca vista, necessita-se de ideias nunca aplicadas. Neste sentido, por que não aproveitar para acabar com o ensino superior gratuito, também um mecanismo de injustiça social? Pagará quem puder, receberá bolsa quem não tiver condições para tal. Funciona assim, e bem, no ensino privado. E em países avançados, com muito mais centros de excelência universitária que o Brasil”. Este é, definitivamente, o apogeu do mau-caratismo editorial dos Marinho.

O trecho destacado mostra o total desconhecimento da realidade socioeconômica brasileira por parte do corpo de editorialistas do Globo. Não é possível acreditar que o sistema privado de ensino é justo e democrático no Brasil. Não é possível acreditar que o acesso às instituições particulares é garantido a todos através de bolsas. Num país com mais de 50 milhões de pobres e 14 milhões de adultos analfabetos, é um insulto afirmar que o ensino privado “funciona bem”. Trata-se de uma visão simplista, quase infantil, que nega o abismo social que define quem acessa as universidades neste país.

O ataque, à frente, passa a ser direcionado à Universidade de São Paulo, entidade reduzida a “um monumento à incúria administrativa” pelo jornal, sob a justificativa de mal utilizar os monumentais 5% do ICMS paulista, cerca de 5,25 bilhões de reais, que recebe anualmente. O Globo se furta a comentar, no entanto, quem administra a USP: um reitor indicado pelo governador do Estado de São Paulo, o mesmo que tentou, em meio à crise que fascina os editores do jornal dos Marinho, diminuir o repasse de ICMS para as universidades paulistas.

Novamente observando a questão de maneira superficial, o jornal culpa a folha de pagamento como exclusiva causa da defasagem orçamentária uspiana. Omite a criação e aquisição de novos campi, como a Escola de Engenharia de Lorena e a USP Leste, que, mantido o repasse original, aumentaram as despesas da universidade. Esquece os 280 milhões de reais gastos pela reitoria em 2015 num Plano de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV) que “devolveu ao mercado” 1433 servidores (este ano, um novo PIDV foi aprovado, com gasto previsto de 118 milhões de reais). Omite os gastos com transporte da reitoria, as obras faraônicas em curso no campus e tantos outros fatores que transcendem a folha de pagamento.

Em outro momento de insanidade, o editorial afirma que “é entre os mecanismos do Estado concentradores de renda que está a universidade pública gratuita”. Acredite, isto foi, de fato, publicado em um jornal de circulação nacional. A universidade gratuita e de boa qualidade, que tem democratizado o acesso ao conhecimento e a informação, foi irresponsavelmente empacotada junto a mecanismos concentradores de renda.

No penúltimo parágrafo, o Globo aponta que 60% dos alunos da USP poderiam pagar mensalidades equivalentes às cobradas por instituições privadas, e “quanto aos estudantes de famílias de renda baixa, receberiam bolsas”. Primeiro, despejam uma informação incompleta que pouco diz sobre coisa alguma. Depois, sugerem que os pobres simplesmente “receberiam bolsas”. Este é o argumento integral do jornal. Pode ser ignorância ou ingenuidade, mas cheira a desonestidade.

Eis o brilhante fechamento do editorial: “Além de corrigir uma distorção social, a medida ajudaria a equilibrar os orçamentos deficitários das universidades, e contribuiria para o reequilíbrio das contas públicas”. Distorção social é acreditar que, num dos países mais desiguais do mundo, acabar com o ensino superior gratuito seria uma solução viável. Distorção é crer que mensalidades resolveriam a situação financeira das universidades públicas. É pensar que bolsas resolveriam a injusta questão de acesso ao conhecimento. É não enxergar que a democratização do ensino não começa nas universidades, mas no ensino básico universal e de qualidade. Distorção social maior é usar o jornalão da família para divulgar seu ideário retrógrado, elitista e medieval.