“Nome social é um questão de proteção”

Aluna transexual da Faculdade de Medicina da USP conta as burocracias enfrentadas para ser chamada pelo nome que a representa

Giovanna Wolf Tadini
Foto: Carolina Ingizza
Alice Quadros, aluna do 3º ano de medicina | Foto: Carolina Ingizza

 

Jornal do Campus – Por que o nome social é importante?

Alice – Eu acho que é importante por uma questão de não exposição. Primeiro porque o meu nome de registro é um nome que não me representa. Meu nome mesmo é Alice, e eu não quero que me chamem do outro porque ele me violenta de várias formas, ele diz uma coisa que a sociedade vive falando pra mim: que eu não sou quem eu sou. Nome social é uma questão de proteção. Não faz o menor sentido você chamar alguém pelo nome que não representa a pessoa, isso que é falsidade ideológica. Porque se alguém chegar aqui e me chamar pelo meu nome de registro, não faz o menor sentido, não me contempla em nenhum nível. É outro mecanismo para dar validade às nossas reivindicações. Eu não nasci homem. Gênero é construído socialmente e não tem essa de dizer que eu era uma coisa e virei outra. Eu sou mulher e eu sempre fui, eu só não era assumida dentro de uma sociedade que violenta pessoas trans.

Jornal do Campus – Desde o início da sua vida universitária, inclusive na Fuvest, como a USP lidou com o seu nome social?

Alice – Eu me assumi depois que eu entrei na faculdade. Fui fazer a solicitação da retificação do nome na Universidade pelo uso do nome social e eles mudaram no site e na carteirinha. Só que, por exemplo, as listas de chamada vão contra a lei, porque existem leis estaduais e federais que dizem que documentos de circulação interna não podem estar com o nome de registro, tem que estar com o nome social e só o nome social. E o que eles fazem aqui não é isso. As listas de chamada sempre (e quando eu digo sempre é 99% das vezes) vêm com o meu nome social entre parênteses e meu nome de registro do lado. Eu fui tentar alterar isso. Antes eu conversava com os departamentos, aqui a gente tem departamento de dermatologia, otorrino, enfim, vários. Quando eu vi que isso era uma coisa sistemática e todo departamento vinha errado, eu fui conversar com a graduação. Basicamente, a resposta que eles deram pra mim foi que a universidade é um autarquia e que ela manda a lista desse jeito e eles não podem mudar. Daí eu falei ‘ah, então vocês estão usando o discurso da autonomia universitária para serem transfóbicos e não seguirem a lei.’ Isso é muito violento, se fosse assim colocasse só o meu nome de registro, desse jeito pelo menos as pessoas não saberiam quem eu sou. Se você coloca seu nome de registro do lado do seu nome social é uma dupla exposição. Outro exemplo é que eu perdi a minha carteirinha e eu estou com o atestado de matrícula para apresentar para pegar alimentação no bandejão. Aí eu sempre dobro o papel para não mostrar o meu nome de registro porque é péssimo, eu vou comprar uma coisa para comer e as pessoas ficam vendo isso, o que estimula outros comportamentos ruins. A lista de chamada é o principal, já tiveram momentos em que fui no ambulatório e aí fizeram chamada com o meu nome de registro. Uma mega exposição, inclusive porque tinham dois pacientes, eu me senti muito humilhada.

Jornal do Campus – Você acha que a crítica mais forte deve ser à Universidade em geral ou ao despreparo dos departamentos?

Alice – É uma crítica à Universidade. Ela deveria mudar a lista de acordo com a lei, mas eles não seguem a lei, então eles mandam a lista pronta desse jeito transfóbico e os departamentos simplesmente não sabem o que fazer,  porque eles não conhecem a legislação, eles mal falam de pessoas trans na graduação. Tipo, a aula de ginecologia é mulher, mulher, mulher, mulher, mulher, mulher. Simplesmente pessoas trans não existem para a Medicina, só existem na hora de patologizar, na aula de psiquiatria para falar que são doenças mentais. E conversar não adianta nada. Conversei até com a diretoria da Faculdade e não mudou nada, eles resolvem pontualmente apenas. Uma coisa que eu questionei foi “bom, se a lista vem assim da Universidade, por que vocês não alteram a lista antes de repassar para os departamentos? Isso nunca foi respondido, simplesmente respondem que não tem como. Aí toda vez que eu me estresso porque essa é uma questão sensível, de exposição e humilhação diária, é sempre aquele discurso de silenciamento: ‘mas você não precisa ser tão grossa, você tem que entender que eu não vou te entender se você estiver falando assim comigo’. Em alguns outros lugares isso é totalmente diferente, por exemplo, a UFRJ segue a legislação, tem uma conduta completamente diferente da que se tem aqui nessa Universidade, uma conduta muito menos transfóbica. Existem diversas outras pessoas que são trans, não necessariamente dentro do binarismo homem e mulher, mas que estão na Universidade de São Paulo e que são extremamente desrespeitadas por causa dessa burocracia violenta.

Jornal do Campus – Com o reconhecimento do nome social pela instituição isso influenciaria na sua relação com os outros estudantes?

Alice – Eu tenho certeza que se isso funcionasse de fato, eu ficaria muito menos exposta e facilitaria diálogos. Muitas pessoas que eu vejo que fazem comentários transfóbicos ao menos teriam vergonha ao nível de que a Universidade não respalda essa atitude. Mas quando a Universidade em si é transfóbica de algum jeito, me chamando pelo nome de registro em documentos que a lei diz que não deveriam, de alguma forma ela está colaborando com o posicionamento dos outros alunos. O nome social é principalmente uma questão de não se expor, mas eu acho que ele é insuficiente dentro de um escala maior. Acredito que a gente tem que aprovar a Lei João Nery, que me dá o direito de poder alterar meu nome em cartório sem passar por todo esse processo difícil que é a alteração de nome hoje.

Eu quero poder alterar meu nome antes de terminar a graduação. Quando o João Nery, que foi o primeiro homem trans que fez a mastectomia no Brasil, alterou o seu nome, ele perdeu toda a formação que ele tinha. Ele era formado em psicologia, trabalhava em três universidades e de um dia para o outro ele virou analfabeto. Isso foi na década de 70, hoje o processo não é tão assim. Muito provavelmente eu consiga alterar os meus documentos e manter a minha formação, mas esse é sempre um risco que está colocado. Dentro de uma sociedade conservadora e de uma situação de golpe em que eu não sei como é que os meus direitos vão estar amanhã, a qualquer segundo eu posso perder a minha formação.

Jornal do Campus – Na sua opinião, como deveria ser a relação da Universidade com o nome social, de forma prática?

Alice – Uma das coisas que acontece é que eu só posso pedir o nome social a partir do momento que eu estou matriculada. Isso já é ridículo, porque se eu tivesse entrado na faculdade assumidamente trans, eu ia ter que fazer a Fuvest com o meu nome de registro, que é extremamente constrangedor, e depois nas primeiras aulas da graduação ainda ter uma lista com o meu nome de registro. O mínimo que a Universidade poderia fazer é, em um primeiro nível, que a Fuvest pudesse ser feita com o nome social (só ele) na prova, e que isso já valesse para a matrícula, que não precisasse recorrer. A justificativa é sempre burocrática. Se isso não for possível na prova, que eu já acho um absurdo, que na semana de recepção, de que, na hora de fazer a matrícula, já tenha um campo para se falar do nome social. Para que a pessoa não tenha que se expor a ir lá depois.

Jornal do Campus – Você consegue prever, pensando nas circunstâncias que você mencionou, se o seu diploma vai sair no seu nome de verdade?

Alice – Eu não faço ideia. Eu não consegui ainda entrar com o processo de alteração de nome em cartório, eu tenho três anos para fazer isso, e eu não sei se isso vai ser suficiente. Não sei como isso vai ser depois, se eu não me formar com o meu nome social, se vai ser oneroso pra mim de alguma forma. Eu vou ter um crachá com o meu nome social, mas não sei se vou ter meu diploma e as coisas do CRM. Vou ter direito ao carimbo com o meu nome social, mas não necessariamente eu vou conseguir o que eu quero mesmo, que é ser eu, plenamente e em todos os âmbitos.