Julieta é mestre pela USP aos 76 anos

Aluna mais velha entre 30 mil pós-graduandos retornou à Universidade após quatro décadas

Aos 76 anos, a psicanalista Julieta Widman começou outubro com um sonho realizado: ser mestre pela USP. Formada pelo Instituto de Psicologia na década de 60, Widman voltou ao mundo acadêmico em meados de 2010 com o programa Universidade Aberta à Terceira Idade (tema da matéria da página 4), no qual se aventurou por aulas de Jornalismo e Arquitetura. Mas foi na Letras que Widman conheceu sua nova paixão, a tradutologia — o estudo das traduções —, e decidiu seguir com a pós-graduação. Aprovada no mestrado com o tema “A hipótese da retradução pelas modalidades tradutórias nas traduções para a língua inglesa de A Paixão Segundo G.H.”, a mestre recém formada agora se prepara para um novo desafio: ser doutora pela melhor universidade da América Latina.

Foto: Liz Dórea
Foto: Liz Dórea

JC: Como começou sua trajetória na USP?
Julieta: Eu terminei o colegial e queria fazer faculdade. A princípio, queria fazer Arquitetura. Mas tinha química no vestibular e eu não iria passar, sabia que ia zerar — principalmente química orgânica. Então, peguei livrinhos de vestibulares e fui ver quais cursos não caíam química. Eu não queria ser professora, então sobraram poucas opções. Uma delas era Psicologia. Aí eu fiz [o vestibular] e entrei em 1959. Interrompi alguns anos, porque fui para os Estados Unidos: trabalhei, estudei e voltei, e me formei em 1969.

JC:Quais foram os motivos que a levaram a voltar?
Julieta: Eu trabalhava como psicanalista, e os pacientes não caem do céu. Quem os encaminha são pessoas que conhecem a gente: professores, colegas, os médicos colegas do meu marido. Essas pessoas já estavam com mais de 60 anos, se aposentando, e meu consultório foi diminuindo. E aí pensei: preciso fazer algo.

JC: De que forma você conheceu o programa Universidade Aberta à Terceira Idade?
Julieta: Fui em uma festa que tinha uma pessoa que estava fazendo. Quando a escutei, pensei “não quero nada para a terceira idade”. Não me sinto velha. Mas me disseram que as vagas eram para a sala de graduação, e então eu fui procurar saber mais. Como eu moro relativamente perto, eu vim e, logo lá na entrada, tem as informações. Existe um livrinho da terceira idade com tudo sobre o programa. Foi aí que decidi fazer a inscrição.

JC: Como foi sua participação?
Julieta: Fiz duas matérias de Jornalismo, duas de Arquitetura e uma que se chamava Tradutologia, na FFLCH. Como eu fazia muitas traduções para a Revista Brasileira de Psicanálise, pensei que seria interessante saber o que iam falar sobre tradução. Fiz tradução comparada, análise contrastiva, e fui ficando muito animada com isso. Formamos até um grupinho de alunos, de amigos, para os estudos. Fui comparar uma obra de literatura brasileira e uma tradução para o inglês, aí achei “A Paixão Segundo G.H.”, da Clarice Lispector, que eu não tinha lido. Abri três colunas e botei o original e as duas traduções, lado a lado, e escrevi os três livros. Levei uns três meses e meio para fazer isso, e era lindo porque eu via em cada pedacinho como ele foi traduzido. Prestei para entrar no mestrado e a monografia virou projeto. Terminei agora dia 30 de setembro. Apresentei o trabalho, passei… agora sou mestra pela USP.

JC: O que a senhora achou da qualidade da iniciativa?
Julieta: O nível é excelente. Não só o nível do que é ensinado, porque é USP, mas dos alunos. Sinto que eles não caíram de paraquedas; sabem do que está se tratando. Quando eu fui fazer aulas de Jornalismo e Sociologia, por exemplo, vi que quem escolheu aquilo sabia o que estava fazendo.

JC: Quais são as principais diferenças na Universidade entre a década de 60 e agora?
Julieta: São muitas. Primeiro, minha classe não completava nem 20 alunos. Tínhamos aula fora, na Maria Antônia, Alameda Glete, Rua Cristiano Viana, com casinha alugada pela USP para aulas de clínica. Nossas aulas eram em volta de uma mesa, na maioria das vezes. A maneira de lecionar e de estudar era diferente. A gente estudava para um seminário e apresentava só aquilo que vimos. Hoje, em função do computador, o pessoal vem e faz uns powerpoints sofisticadíssimos… quando eu vi pela primeira vez, achei lindo. Tem molduras, títulos diferentes, que eu nem sabia como se fazia. Agora já sei.

JC: E a relação com as pessoas?
Julieta: Em todas as minhas classes eu fui bem recebida. Não senti preconceito. Em relação a isso, estávamos discutindo outro dia: naquele tempo não tinha muita gente de mais idade. Hoje tem pouco, mas tem mais do que antes. Naquele tempo, a mulherada tingia o cabelo branco. Pessoal que tinha mais idade, quando começavam os primeiros cabelos brancos, tingia depressa. Por que hoje as pessoas deixam mais natural? Tolerância. Tolerância com a diversidade, porque antes o velho não era aceito e precisava disfarçar. Toda a diversidade precisava ficar dentro do armário, escondidinha. Hoje em dia, a diversidade é mais aberta, mais aceita.

JC: A senhora sentia que pertencia às turmas?
Julieta: Sim, o tempo todo. Eu só percebia que eu não era um deles se eu olhasse para algum vidro, algum reflexo, e visse meu cabelo. De repente, eu dizia “puxa!”. Para mim, eu estava muito igual. Seria como aqui, entre nós, e de repente eu vejo que sou diferente. Mas não é. Enquanto eu estou na aula, enquanto estou participando, eu esqueço que eu sou de mais idade.

JC: No ambiente universitário, surgiram muitas amizades?
Julieta: Muitas. Vieram todos na minha defesa de mestrado e depois foram todos almoçar na minha casa. A casa ficou cheia!

JC: Houve alguma grande dificuldade durante este processo?
Julieta: Não. Ao contrário, a minha bagagem ajudou muito. Eu nunca parei de estudar. Fiz a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), sempre fui em congresso, escrevi. Tenho filhos entre 40 e 45 anos de idade e sempre acompanhei os estudos deles. Meu marido, que é médico, ainda trabalha e escreve, e eu acompanho. Leio dois jornais por dia. Eu não posso dizer que, de repente, caí de paraquedas por aqui… Não posso dizer que depois de muitos anos eu voltei a estudar. Nunca parei. Tudo isso, 60 anos de bagagem, me ajuda muito. Eu tenho muita facilidade.

JC: Como é ser a aluna de mais idade entre os 30 mil pós-graduandos da USP?
Julieta: Por um lado, me sinto bem. Por outro, eu gostaria de ser a aluna de menos idade… Eu queria nascer de novo, começar de novo. Mas se eu nascesse de novo, eu não teria essa cabeça. E essa cabeça eu só tenho porque tenho 76 anos.

JC: E agora, quais os seus planos para o futuro?
Julieta: Meu pai, que viveu até os 97 anos, dizia que nessa época da vida tudo é urgente, porque ele tinha consciência de que não ia durar para sempre. Estou esperando o resultado do primeiro exame do doutorado. Se eu passar, mando o projeto na próxima segunda-feira. Minha orientadora disse para deixar para o ano que vem. Não deixar para fazer o exame de conteúdo em um dia e defender no outro, porque tem que se preparar, tem que estudar. E eu recusei, porque doutorado é cinco anos. Nessa altura da minha vida, um ano faz diferença. Então, mesmo que eu não passe nessa seleção, vou fazer como se eu tivesse passado e me adiantando. Se por um acaso não der, eu presto de novo no ano que vem e, em vez de terminar em cinco anos, termino em quatro.

JC: Quais conselhos daria aos jovens universitários sobre vitalidade e persistência?
Julieta: Não parem nunca. Se parar, em qualquer idade, é muito difícil retomar. A pessoa veste um pijama, se aposenta, e aí sim fica velho. Eu sou velha só olhando; se você fechar os olhos, me escutar, me ler, eu não sou. Fisicamente, eu não me sinto velha. Eu não tenho dores, como de tudo. Vejo os meus amigos, e os que pararam estão velhos. A chave é essa: não ficar contando os anos que faltam para a aposentadoria.