Caros dirigentes da FMUSP: precisamos falar do estupro

Ilustração: Natalie Majolo (Tuxa)
Ilustração: Natalie Majolo (Tuxa)

Caros dirigentes da Faculdade de Medicina,

É sempre com muito orgulho que essa comunidade acadêmica estufa o peito para falar que, gostem os rankings internacionais ou não, ainda somos a melhor Universidade da América Latina. Estranho, porém, é o silêncio sepulcral reservado aos casos de estupro que se sucedem dentro dessa mesma USP. Deixe-me, então, lhes contar algumas coisas dessa latina América sobre a qual costumamos nos elevar.

A cada 9 dias, uma mulher morre no Chile. Quando os grandes navegadores aportaram na terra-mãe, a menina América Latina nem mesmo havia alçado a sua menarca no momento em que passou a ter o seu rebento violado — do ouro ao petróleo, do pau-brasil à plantação de soja. A exploração, por sua vez, materializou-se na forma de uma herança maldita e fincou-se em nossos corpos: das índias que tinham o seu sexo barganhado por especiarias; das escravas que adentravam a Casa Grande para servir aos seus senhores; das imigrantes que ao invés de pasárgadas viveram verdadeiros infernos; das guerrilheiras e seus ventres agredidos nos porões da ditadura; às nossas mulheres que hoje dolorosamente padecem somente por sê-las.

A cada 2 dias, uma mulher morre na Colômbia. Para ser uma dessas vítimas, prezados dirigentes, basta portar o tal “sexo frágil”: nos obituários, as causas de morte mais comuns estão no cumprimento de nossas saias, no tamanho de nossos decotes, na espera por um ônibus tarde da noite, na rua mal-iluminada pela qual optamos por passar, na embriaguez em uma festa, num término de namoro não-aceito, na recusa ao sexo ou na falta de tempo para preparar o jantar. E quando essas mulheres não dão mole o suficiente, dá-se um jeito. Em Bogotá, na Colômbia, é cada vez mais comum o uso de benzodiazepinas e estramônio, ambas conhecidas como “drogas do estupro”. Só na Cidade do México, onde o mesmo feito se sucede, mais de 300 mulheres são estupradas por ano sob o efeito de substâncias como essas. Vocês, enquanto médicos, devem saber bem o efeito de doses desse tipo em nossas entranhas.

A cada 36 horas, uma mulher morre na Argentina, sendo que a cada 24 horas, apenas nas delegacias de Buenos Aires, são recebidas mais de 166 denúncias por agressões. Talvez uma dessas ligações pudessem ter sido a de Lucía Pérez, três semanas atrás, se ela tivesse tido a chance de clamar por socorro. Mas não. Dopada, violentada, subtraída e empalada. Ela tinha apenas 16 anos, e precisou que todas as suas outras irmãs latinas marchassem pelas ruas e fizessem as vezes de quem não se coube diante de tamanha brutalidade.

A cada 12 horas, uma mulher morre na Guatemala. É verdade que, na última década, 16 dos 20 países latino-americanos implementaram em seus códigos penais punições para o feminicídio, mas isso não condiz com a contagem regressiva feita ao longo desses parágrafos. O quão encorajador é para uma mulher ir a uma delegacia comandada por homens sabendo que lá ela será rechaçada? Que garantia de segurança ela terá após fazer um boletim de ocorrência contra o seu agressor? Isso sem contar os absurdos à parte, como acontece na Bolívia. O país até tem lei contra o feminicídio, mas apenas reconhece agressões cometidas por maridos se a mulher ficar incapacitada por mais de trinta dias. Trinta.

A cada duas horas, uma mulher morre no Brasil. Mais do que isso: a cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. Em 2014, três mulheres entraram nessa estatística ao terem seus caminhos cruzados com Daniel Tarciso da Silva Cardoso, um dos tantos uspianos acusados de estupro que, no final da última semana, recebeu o aval para se formar “doutô” pela FMUSP, caros dirigentes. No restante da capital paulista, as perspectivas não são mais positivas: do ano passado pra cá, houve uma alta de 30% nos casos relatados de estupros. “Relatados”, reitero. Imagine quantos não morrem entalados em nossos receios.

É por isso, dirigentes, que essa é uma carta em repúdio à iniquidade hedionda do estupro, ao feminicídio, à cultura machista e assassina que nos ceifa, à ausência do amor e do respeito, uma recusa ao silêncio que abocanha a violência contra a mulher. É, sobretudo, uma carta em repúdio aos assassinos de Lucía Pérez, uma memória à lembrança da última mulher que teve sua agressão exposta em programas policiais e um grito visceral contra uma instituição que se omite e emudece diante de uma acusação dessas. É para lembrá-los de que a lentidão em trazer respostas e soluções (senão a permissão para que uma pessoa que sofre um processo grave como esse possa se formar) é uma falha. Estejam avisados, excelentíssimos dirigentes: vocês que se calam também nos abusam.

Atenciosamente,

Alunas do Jornal do Campus