Descobertas 18 linhagens de células-tronco

Equipe do IB se concentrou em caracterizar células embrionárias de genoma brasileiro
Amostras de sangue para o projeto ELSA (Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto) no Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (HU – USP), na Cidade Universitária, em São Paulo. Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Amostras de sangue para o projeto ELSA (Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto) no Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (HU – USP), na Cidade Universitária, em São Paulo. Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Você já parou para pensar que existem milhares de remédios e fármacos para diversos tipos de enfermidades no mundo? Já pensou também que dentre esses milhares, alguns são ótimos e fazem efeito rapidamente em você, em mim, em seu colega… Outros fazem efeito em mim, em seu colega, mas em você, não resolve muita coisa… Outros ainda não funcionam em nenhum de nós. Mas, por quê? Por que os fármacos, que são substâncias tão específicas e precisas, às vezes funcionam tão bem em alguns, porém não surtem efeitos em outros? Bem, as respostas são muitas e passam por diferentes aspectos. Um dos aspectos mais relevantes tange à diversidade genética. O genoma de cada um influencia em praticamente todas as respostas celulares do organismo, inclusive nas respostas a medicamentos. Por isso é tão importante que os cientistas conheçam os diferentes aspectos genéticos da população.

Visando obter material biológico que melhor refletisse a diversidade da população brasileira — conhecida por ser plural e cheia de misturas — um grupo de cientistas da USP conseguiu criar 18 novas linhagens de células-tronco; o genoma dessas ‘novas’ células corresponde mais fielmente à miscigenação da população brasileira.

Essas novas linhagens de células-tronco foram criadas através de um procedimento altamente sofisticado que produz células pluripotentes induzidas; esse método é conhecido como iPS (sigla em inglês para induced pluripotent stem cells). Nesse procedimento, células já adultas são induzidas a regredir ao estado de embrionárias. Já na condição de embrionárias pluripotentes, essas células possuem a capacidade de se diferenciar e se transformar em células que constituem praticamente todos os tecidos do corpo.

Arte: Marina M. Caporrino
Arte: Marina M. Caporrino

*A ciência chama de células-tronco pluripotentes aquelas células embrionárias que podem virar qualquer tipo de tecido do corpo humano. Em 2007, cientistas japoneses conseguiram desenvolver o método iPS que reprograma células adultas para que se tornem embrionárias pluripotentes. Uma vantagem da célula induzida é que se pode escolher o indivíduo em que será aplicado o procedimento. Diferentemente da embrionária, na qual não se sabe qual indivíduo é esse.

A professora Lygia Veiga Pereira, do Instituto de Biociências (IB-USP), que coordenou a pesquisa publicada no “Scientific Reports” (periódico editado pela “Nature”), contou ao JC que a ideia de construir uma biblioteca de células-tronco que representassem a genética brasileira surgiu a partir da variação do percentual de pessoas que respondem ou não a medicamentos. Para a professora, seria interessante ter a oportunidade de testar os fármacos em células específicas que representassem a miscigenação brasileira. “Um fator muito importante que vai determinar se você responde ou não a determinado medicamento é a sua genética, são os seus genes”, esclareceu. “A gente começou a se interessar pela questão do uso dessas células embrionárias para prever a resposta a novos medicamentos, novos fármacos. […] Então a ideia é que a partir dessas células embrionárias, consigamos produzir [tecidos] em que testaríamos os medicamentos diretamente neles”.

Hoje, para verificar sua eficácia e toxicidade, remédios e fármacos são testados em animais como camundongos, por exemplo. No entanto, a fisiologia animal difere da fisiologia humana. Então, os pesquisadores tiveram a ideia de testar os medicamentos diretamente nos tecidos humanos derivados de células embrionárias. No entanto, a maior dificuldade encontrada pela equipe do IB foi a descendência europeia presente no genoma de 95% das células embrionárias às quais os cientistas tinham acesso, ou seja, esse genoma não representa a diversidade da população brasileira. Os embriões são provenientes de clínicas particulares de inseminação artificial, consequentemente o genoma dessas células torna-se restrito a uma camada específica da sociedade, no caso branca e de descendência europeia. “A nossa hipótese é: esses embriões vem de clínicas privadas de fertilização in vitro, e não é a população brasileira toda que tem acesso a essas clínicas”, apontou uma provável causa da restrição do genoma das células de embriões.

Para solucionar o problema da diversidade, a professora Lygia Veiga Pereira recorreu ao projeto ELSA (Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto) do Ministério da Saúde. O programa acompanha a saúde de cerca de 15 mil brasileiros, fazendo, a cada dois anos, exames clínicos e entrevistas a fim de observar a incidência de doenças crônicas. O Hospital Universitário (HU) é um dos centros do ELSA. O grupo do IB fez uma parceria com o projeto ELSA e passou a coletar sangue de participantes do HU.

Através do procedimento iPS, a professora Lydia e sua equipe conseguiram reprogramar as células saguíneas, induzindo essas células adultas a regredirem ao estado de embrionárias para se tornar células-tronco pluripotentes. “Então, a partir dessas células-tronco pluripotentes induzidas, a gente também consegue fazer células do fígado, neurônio, coração”, esclareceu. O grupo coletou o sangue de cerca de dois mil pacientes do ELSA e já reprogramou as células de quase 30 deles.

Os cientistas escolheram aleatoriamente 18 amostragens de células-tronco pluripotentes induzidas para analisar o genoma e notaram que elas possuem uma mistura do genoma índio, europeu e africano correspondendo mais fielmente à realidade da miscigenação brasileira. “Agora a gente pode fazer essa biblioteca de células que representem a população  brasileira. Para testes in vitro de toxicidade ou validade de drogas, temos a população brasileira para testar”, ressaltou Lygia.

É a primeira vez que esse tipo de estudo e procedimento é realizado no Brasil e visando construir uma biblioteca de células-tronco com as características da miscigenação do genoma da população nosso país. Além de incluir a genética em pesquisas do mundo todo, o estudo ainda estimula que outros grupos estudem o DNA do nosso país. “Disponibilizar células com a nossa genética e origem vai fazer com que mais pessoas estudem essa nossa população e talvez descubram combinações genéticas particulares dos que têm um impacto na nossa saúde”, concluiu a professora Lygia.