Quem foi Fidel Castro, líder cubano que morreu na última sexta, 25

Segundo especialista, imagem do governante ainda fica dividida entre ditador e revolucionário
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Foi depois de 90 anos que se encerrou, na última sexta-feira (25), a história do líder cubano Fidel Castro. Ou melhor, encerrou-se a vida, porque a historia de Fidel e a de Cuba se embaraçaram de tal maneira que seu legado sobreviverá à sua própria morte. Fidel foi, antes de tudo, um símbolo, e um símbolo polêmico: é visto por aqueles que o apoiaram como alguém que levou o país a obter as maiores conquistas sociais de toda a América Latina, que enfrentou o imperialismo norte-americano, que conseguiu erradicar o analfabetismo; por outro lado, é visto por seus opositores como um líder autoritário e personalista, que instalou um sistema de partido único, restringiu liberdades civis e perseguiu seus opositores. Para os especialistas da Universidade, Fidel foi tudo isso, nem herói nem vilão – ou, talvez, ambos.

Para começar a falar de Fidel, é necessário falar de Cuba. Durante anos o país viveu como uma colônia norte-americana sob a ditadura de Fulgêncio Batista, alinhado aos Estados Unidos. Nesse contexto, surge o movimento 26 de Julho (M-26-7) , formado por um grupo de guerrilheiros dentre eles, Fidel e Che Guevara com o objetivo de instaurar a democracia no país. O nome do movimento faz referência ao assalto ao quartel de Moncada, em 26 de julho de 1953, que foi a tentativa dos rebeldes para derrubar a ditadura de Batista. Após o fracasso da ação, Fidel e alguns de seus companheiros ficaram exilados no México, quando criaram o M-26-7. Iniciou-se, então, a Revolução Cubana, que só assumiria formato socialista anos mais tarde. “No momento inicial, Fidel Castro não era do partido comunista quando começou essa luta no campo político. Ele era ligado ao Partido Ortodoxo, que tinha posição nacionalista e anti-imperialista, mas não socialista”, explica Gabriela Pellegrino, professora de História da América Independente na USP.

A professora explica que, após o êxito da revolução cubana em 1959, a ilha viveu um período de grandes liberdades políticas, culturais, e de experimentação artística. “Então havia ali o embrião de um regime anti-imperialista que fosse capaz de assegurar a soberania de Cuba frente aos Estados Unidos, mas que não comprometeria liberdades em vários planos”, diz Pellegrino. Entretanto, em abril de 1961 acontece a invasão à Playa Giron – de exilados cubanos com apoio dos Estados Unidos, que tentam entrar na ilha para derrubar o governo revolucionário. O novo governo consegue resistir à tentativa norte-americana, porém fica claro para os cubanos que os Estados Unidos poderiam realizar uma nova ação a qualquer momento.

Além disso, Cuba passa a sofrer, principalmente após 1962, um embargo econômico por parte dos estadunidenses que dura até hoje. Ameaçados e sem parceiros comerciais, os revolucionários decidem, então, aliar-se à União Soviética e assumem, de fato, uma postura socialista, o que acabou por prejudicar a instauração de uma democracia na ilha. “Cuba dependia da construção dessa rede de alianças e isso teve efetivamente um custo alto para a Revolução Cubana, porque significou uma crescente perda de liberdades políticas, de liberdade de expressão, de liberdades nas relações sociais – já que certos grupos passaram a ser perseguidos como, por exemplo, os homossexuais. Então o apoio soviético de algum modo levou Cuba a um socialismo ortodoxo, autoritário, que acabou de fato se distanciando da ideia de uma revolução libertária”, completa a historiadora.

Ao mesmo tempo em que não conseguiu garantir as liberdades individuais de sua população, a Revolução Cubana teve, porém, o mérito de atingir conquistas sociais bastante expressivas. Já nos primeiros três anos após a revolução, o analfabetismo foi erradicado no país, e, até o fim da União Soviética na década de 90, os cubanos conseguiram erradicar a pobreza extrema, construir um sistema público de saúde com qualidade, e garantir que a população tivesse, em média, um alto nível educacional. “Os avanços sociais foram imensos se pensamos na economia de um país subdesenvolvido e que até então era área de lazer dos estadunidenses, campo de saque da máfia dos EUA, coberto de cassinos e redes de prostituição. Cuba atingiu altos índices de desenvolvimento social como o fim do analfabetismo, ampliação da rede hospitalar, pleno emprego e direito universal à moradia, alimentação e fim da fome para todos os segmentos da população”, afirma o professor de história da USP Everaldo de Oliveira Andrade.

O legado de Fidel e o futuro de Cuba

Do mesmo modo que ocorria enquanto estava vivo, o legado do líder cubano fica sujeito a disputas ideológicas a respeito do que foi seu governo e do que foi a própria Revolução Cubana. “Esse legado se insere no plano das disputas simbólicas sobre o passado, que são disputas muito profundas e muito polarizadas. Então por um lado temos o fato inegável de que Fidel Castro representou a realização de um grande feito, de um grande sonho, que foi a possibilidade de um povo tomar o destino em suas próprias mãos, e escolher um caminho diferente daquele que é imposto pelo imperialismo”, diz Pellegrino. “Por outro lado, existe um legado que diz respeito às vidas que foram afetadas pela revolução, que não concordaram com os rumos da revolução e que deixaram o país e foram viver no exílio. Então, o legado de Fidel Castro como alguém que arruinou vidas também está colocado no plano dessas disputas simbólicas”.

Para Silvia Miskulin, historiadora formada na USP e especializada em Cuba, Fidel foi um líder personalista, acumulando cargos durante mais de 50 anos, e deixa como legado uma tentativa de construção de uma sociedade mais igualitária (ainda que membros do governo tivessem privilégios com relação ao povo cubano), que atingiu conquistas sociais significativas, mas que não foi bem sucedida em industrializar o país e dar mais liberdades à sociedade civil. “[Em Cuba] eles não eliminaram a desigualdade, mas eliminaram essa pobreza extrema. Porém, não conseguiram desenvolver o país do ponto de vista de uma autonomia econômica, industrial e alimentar, não conseguiram fugir de uma burocratização. E não conseguiram equalizar distribuição de renda com liberdade, então faltou, por exemplo, mais espaço para várias organizações políticas”.

Com Fidel assumindo uma posição secundária no governo ao longo da última década, quem efetivamente governa a ilha desde 2006 é seu irmão, Raul Castro. Sob seu comando, Cuba deu alguns sinais de abertura econômica e, mais recentemente, de abertura política, com a reaproximação diplomática com os Estados Unidos e com a chegada – ainda que controlada – da internet. “O que acontece é que já está em curso, desde antes do Fidel passar o poder para o Raul, mas sobretudo após o Raul no poder, um processo em curso de restauração do capitalismo na ilha, e essa restauração põe em risco as conquistas sociais no campo da educação, da saúde. Essa me parece ser uma tendência que vai se acentuar no governo do Raul”, afirma Silvia. Mas essa tendência estará condicionada também a fatores externos como a postura do novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. O certo é que, vivo ou morto, Fidel continuará um dos personagens mais importantes, influentes e polêmicos da história da América Latina. Ao contrário do que disse, não é possível saber se a história de fato o absolverá.

Esta reportagem foi publicada originalmente com o título “Fidel Castro, figura de amor e ódio”