Siga o dinheiro: quem ganha com as perdas

Projeto da Reitoria restringe o espaço da Universidade e a torna cada vez menos pública
Arte: Artur Karaa
Arte: Artur Karaa

O lugar que habita meus dias é cercado, monitorado, tem controle de entrada e de saída. As pessoas são sempre as mesmas e estão sempre nos mesmos lugares, fazendo sempre o mesmo trajeto, pois só há um caminho possível do ponto A ao ponto B no lugar que habita meus dias. O som é o silêncio e a cor é um verde intermitente misturado com faroletes azuis e laranjas. O movimento e a vida têm hora para acabar. Dentro de um prédio mais branco que um elefante branco, ficam aqueles que me observam. Branco nas paredes. Branco no chão. Branco nas peles. Se sabemos dos lugares em que estamos por cheiros, sons e sensações, posso dizer que minha resposta sinestésica para o lugar que habita meus dias é uma prisão. Meu cárcere chama-se Universidade de São Paulo.

O verde escuro que antes predominava nas árvores, está nas grades. Os espaços abertos e públicos, que antes ilustravam a imponência e diferencial da USP em relação à outras instituições de ensino, estão cercados. Os alunos, que antes circulavam e conviviam no campus, estão entocados em prédios quase fantasmas, com poucos funcionários para zelar pela sua segurança, realizar o serviço de limpeza ou trabalhar nas secretarias. O que descrevo aqui não é, no entanto, muito diferente da realidade de outras instituições de ensino públicas. Talvez o ensino superior público estivesse vivendo dentro de uma bolha e, diante de um momento de crise, a decisão da Reitoria foi estourá-la e nivelar por baixo. O sucateamento, tão conhecido de outras instituições públicas, adentrou os portões da Universidade.

A questão é: se estávamos tão adiante da realidade de nosso país, qual é o propósito de voltar atrás? Motivo de orgulho e reconhecimento para muito, galgar um espaço no ranking das 100 melhores universidades do mundo não foi uma tarefa fácil. Ser responsável pela produção de importantes pesquisas científicas e oferecer de maneira “gratuita” serviços essenciais para a população, como tratamentos médicos de ponta no Hospital das Clínicas, também não. Com a demissão em massa de funcionários, restrição ao acesso a bolsas de pesquisa e intercâmbio e a falta de professores, manter o que foi construído em 83 anos de história será inviável.

Enxergar o fim desse caminho não é muito difícil. O ensino básico oferecido pelo Estado foi bom um dia. Com o passar do tempo a qualidade caiu e aqueles que podiam passaram a pagar por escolas melhores. O ensino superior público, por outro lado, continuava no topo. Hoje em dia, estudar em uma universidade pública abre janelas e não portas, como antigamente. Ficamos pra trás. O ensino, muitas vezes retrógrado, não acompanhou os avanços exigidos pelo mercado de trabalho. A estrutura física das universidades, assim como as condições de trabalho, também pioraram, fazendo com que parte dos professores migrasse para outro país ou para faculdades privadas. Para saber a explicação de boa parte das ações de um governo, de empresas e, logicamente, das reitorias, basta aplicar a máxima: siga o dinheiro. Quem ganha com o sucateamento das universidades públicas?

No Portal da Transparência do Governo Federal brasileiro, a empresa Anhanguera Educacional aparece entre os cinco maiores favorecidos por pagamentos nos últimos 3 anos. Em 2015, ficou atrás apenas do Banco Central, recebendo R$ 947 milhões do Governo, sendo que a maior parte desse gasto é discriminado como “Concessão de Empréstimos e Financiamentos”. O valor cobriria boa parte déficit orçamentário da USP no mesmo ano, de aproximadamente R$ 988 milhões. Vale lembrar que a Anhanguera é uma das maiores empresas de ensino privado do Brasil e, recentemente, fundiu-se a outra gigante da área, a Kroton Educacional. Juntas elas se tornaram a 17ª empresa da Bovespa e a principal beneficiária dos investimentos do Governo Federal em educação privada. Seria essa a nossa resposta?

Aproximar as universidades do restante das instituições públicas do país, através da queda da qualidade do serviço oferecido e precarização em diversos níveis, inevitavelmente (ou pior, intencionalmente) favorece a iniciativa privada. E ainda que as grades cada vez mais presentes no campus pareçam um problema menor diante da crise enfrentada não só pela Universidade de São Paulo, mas pelo Brasil, elas são consequência de um retrocesso apelidado de “projeto de desenvolvimento”.

Excludentes por natureza, as universidades têm materializado seus processos seletivos em cercamentos e catracas. Os campi, antes frequentados não só por alunos, funcionários e professores, mas também por trabalhadores ambulantes e visitantes, estão vazios. Ironicamente, a ideia de segurança proporcionada por grades não se aplica no espaço público. Os espaços, antes ocupados, estão vazios e cada vez mais inseguros. Um tiro pela culatra, que tira da universidade os alunos, funcionários e professores, que não mais encontram nela o lugar que habitava seus dias antes das grades, do sucateamento, do projeto de desenvolvimento que os exclui.

Num cenário ideal, as universidades caminhariam para processos seletivos mais justos e inclusivos, assumiriam, de verdade, o compromisso de dar retornos sociais pelo uso do dinheiro público e seriam um espaço bem utilizado pela população, como acontece em outros países mais desenvolvidos que o nosso. Talvez seja esse o motivo do cenário ser diferente, o desenvolvimento. Ou o contrário, esses países se desenvolveram através da melhor utilização do espaço público e da luta por direitos básicos, como educação de qualidade oferecida pelo Estado.