TV digital não democratiza acesso à informação

JC conversou com o pesquisador Valdecir Becker sobre os principais aspectos da mudança

Valdecir Becker dedicou seu doutorado ao estudo da TV digital. (Foto: Arquivo pessoal)

O corte do sinal analógico traz uma nova fase na produção televisiva, tanto na área de conteúdo quanto na questão tecnológica. Embora a qualidade de som e imagem sejam de fato superiores, o processo de expansão da TV digital no Brasil falhou na busca de alguns de seus objetivos. A democratização do acesso à tecnologia e informação era uma das principais pautas do início do projeto, porém, quase 10 anos depois da primeira exibição da TV digital no Brasil, o acesso ao sinal ainda é limitado. Segundo pesquisa do IBGE divulgada no final do ano passado, 13 milhões de domicílios brasileiros possuíam apenas TV analógica aberta, ou seja, ficariam com as telas escuras assim que o desligamento do sinal analógico fosse feito.

Além disso, com o corte, o sinal de três emissoras abertas (SBT, RedeTV! e Record) foi interrompido nas principais TVs pagas. O motivo é que, a partir de agora, com o sinal digital, as operadoras só podem transmitir o canal com autorização das televisoras. Enquanto três das emissoras brasileiras com grande audiência continuam fora do ar para grande parte da população, o monopólio de outras aumenta, influenciado também pela maior capacidade financeira de oferecer os serviços nos novos parâmetros de qualidade. Até o fechamento desta edição, nenhum dos canais citados havia chegado a um acordo de remuneração com as operadoras, continuando, assim, fora do ar.

O Jornal do Campus entrevistou Valdecir Becker, que é jornalista e Doutor em Engenharia Elétrica pela Escola Politécnica da USP, autor da tese Ambiente de medição da audiência para TV digital, para comentar outros aspectos envolvidos no corte do sinal analógico.

Jornal do Campus: Quais são as principais diferenças técnicas entre o sinal analógico e o digital?

Valdecir Becker: A qualidade do sinal é a principal diferença. O vídeo e o áudio são muito melhores no sinal digital. No caso do vídeo, a alta definição é 6 vezes melhor do que o sinal analógico pode chegar.  

JC: Como o corte no sinal da tv analógica afeta o consumidor?

VB: Quem não tem receptor digital fica sem TV. Isso aconteceu em Rio Verde, em Brasília e agora em SP. Aconteceu também em praticamente todos os mercados internacionais que desligaram o sinal analógico. É um processo lento fazer com que toda população tenha recepção digital, mesmo com a distribuição gratuita dos receptores.  

JC: Desde a primeira exibição com sinal digital em 2007, o governo investiu na expansão da TV Digital no país. Você acredita que foi uma tentativa de democratizar o acesso à informação?

VB: Em uma parte do processo, sim. Em um dado momento, especialmente no começo da pesquisas sobre TV digital, o foco era na democratização e inclusão. No entanto, entre 2008 e 2012 o governo se absteve de participar de qualquer discussão sobre o tema, o que fez o assunto democratização desaparecer da pauta. O middleware Ginga (software desenvolvido no Brasil para a interatividade de TV’s) poderia ter sido o caminho, mas foi enterrado nesse período.

JC: O incentivo a esta plataforma mais interativa da TV Digital está relacionado com a perda de influência da TV para a internet?

VB: Em parte sim. Mas é preciso considerar que a proposta da interatividade é de 2004, documentada em 2005, e ficou até 2013 sem qualquer atualização. Naquele momento o foco era inclusão, hoje virou para uma recuperação tardia da hegemonia.  

JC: Existe algum interesse financeiro por parte dos canais abertos de TV na mudança do sinal analógico para o digital? Visto que, por exemplo, com o analógico, o sinal deles era transmitido gratuitamente pelas operadoras fechadas.

VB: Essa questão é bem complexa. Por um lado, TV digital é um aumento absurdo dos custos de produção e transmissão (vide o caso da RedeTV!, que investiu pesado no digital e no 3D e quebrou em seguida). Por outro, é inimaginável uma TV analógica ou mesmo SD hoje, porque todos os demais produtos audiovisuais estão em alta definição ou 4K. Por isso, o digital foi uma questão de sobrevivência. Quanto ao must carry  (transmissão de emissoras abertas por operadoras de TV), esse item precisa ser melhor negociado entre emissoras e TVs pagas. A Globo fechou a negociação ano passado, enquanto outras foram pra briga. Se não houver acordo rápido, pode ser mais um problema econômico para os canais já em crise.  

JC: Como é a situação da TV em outros países? Como o Brasil está nesta política quando comparado ao cenário internacional?

VB: Tecnologicamente, a TV aberta está equiparada com a de outros países. A TV paga está bem defasada, especialmente nos modelos de oferta de conteúdos e de gravação, o catch up TV (possibilidade de assistir a transmissão depois que ela foi exibida). Em termos de modelos de negócio, o Brasil é um caso a parte, com TV comercial forte e inexistência, na prática, de TV pública. Ao contrário da Europa, onde predomina a TV pública.