O trabalho mais duro que existe é ser mãe

O abismo que separa os direitos à qualidade de vida ainda é grande entre Marte e Vênus

(Arte: Artur Karaa)

Dá a mão! Você vai se perder nesse metrô lotado. Pula, cuidado com o vão entre o trem e a plataforma. Não mexe aí que é sujo, vai ficar doente. Não empurra as pessoas! Desculpa, moça. Desculpa senhor. Corre, vou me atrasar. Sem fazer manha, já estamos chegando. Te dou um doce se você se comportar direitinho. É aqui. Bom dia. Oi, bom dia. Senta aqui. Toma, trouxe teu homem-aranha. Fica quietinho. Não vai atrapalhar o serviço dos outros. Não quero ouvir nem um piu.

Assim, com bolsas escuras embaixo dos olhos e um esboço de sorriso por educação, ela entra apressada pela porta lateral. Já havia largado outros cinco empregos no último ano. Ora essa, mulher com filho querendo trabalhar e estudar. Teu marido que te sustente. Homens e mulheres, cada um que cumpra seus respectivos papéis. Mas ela quis invadir um mundo masculino. Mulher não precisa se formar. A única coisa que precisa é tomar conta da criança e da casa. Nem isso ela faz direito. Cabelo desgrenhado, não usa maquiagem, uns dois botões faltando na camisa. Mal-tratada, não sabe cuidar nem de si mesma.

O menino? Tem lá pelos seus três ou quatro anos. Criança esperta, com certeza puxou ao pai. Mas educação que é bom, a mãe não deu. Não passou nem meia hora e já largou o boneco no pé da mesa, ao lado da impressora. Quer ele mesmo salvar o dia. Corre entre as baias do escritório. Passa debaixo das escrivaninhas. Esbarra nas pernas dos outros. As pessoas olham feio. Encaram a mãe, ela está concentrada. Começou na empresa há poucos dias, precisa mostrar serviço.

Escondido embaixo dos móveis, ele segura a risada com as mãos na boca. Não tem modos. Rasteja pelo carpete puído, topa nas mesas, derruba uma caneta aqui ou um grampeador ali. Atento a tudo em sua volta, qualquer ruído pode ser um vilão se aproximando. Não pode vacilar, está preparado para o combate. Dali a pouco, nota murmúrios e barulho de objetos quebrados.

Moleque mal-educado! Deixou o brinquedo jogado, o moço tropeçou. Viu o boneco estilhaçado, abre o berreiro. Sua mãe não te ensinou a guardar as coisas? Isso que dá levar criança para o trabalho. Se quer trabalhar, não tenha filho.

Engole o choro. Pede desculpas. Desculpa, moço. Já não te disse para ficar quieto?

Ela agarra o menino pela mão e puxa para o banheiro. Com os bracinhos cruzados, ele esbraveja. Rosto molhado, tanto catarro que até entrava-lhe pela boca. Não sabe nem limpar a criança. Mulher irresponsável.

Não pode criança aqui. Não tem uma avó ou uma tia que pode ficar com ele? Aqui não pode ficar, atrapalha o trabalho. Deixa na casa da vizinha. Lá na tua faculdade não tem creche? Vou te dar mais uma chance, que não se repita.

Levou bronca na primeira semana. Bem feito, não sabe educar o filho. Quis ter, agora se vira para criar. Aguenta, pensa que ser mãe é fácil? Na hora de fazer foi bom.

Retorna ao trabalho. Concentrada, depois do sabão evita até piscar. Com os olhos baixos e beiços em evidência, ele finalmente se aquieta. Senta numa almofada no chão, encosta a cabecinha na parede e adormece. Ela usa a malha de lã surrada que vestia para protegê-lo das rajadas frias que saiam de um ar-condicionado barulhento. Que tipo de mãe deixa a criança dormir no chão?

Ele repousa no canto. Ela martela o teclado enquanto encara os ponteiros do relógio. Está contando os segundos. Dá uns cliques, levanta subitamente.

Acorda. Vamos embora. Coloca a bolsa no ombro, pega-o nos braços. No ônibus você dorme. Tá pesado, vou te pôr no chão, tem que ir andando. Segura, senão você cai! Vem, senta aqui. Quer uma bolachinha? Come, vai demorar para voltar para casa. Quer olhar pela janelinha? Deixa eu te vestir o casaco, está esfriando.

Ela faz algum curso qualquer na USP. Leva o filho para todo canto, não tem com quem deixá-lo. Egoísta, não abdica de nada por ele. Pobrezinho, com uma mãe dessas vai crescer traumatizado…
Vem, a gente desce aqui. Será que consigo te por na creche? Corre, a secretaria vai fechar. Não é tão longe assim. Na volta te compro outro boneco do homem-aranha. Se eu conseguir te por lá, vão ter outras crianças para você brincar o dia todo. Você vai gostar, prometo. Tem um montão de brinquedo. É ali já, vamos.

Entra esbaforida. Joga os pertences no chão, segura-o pela mão e dirige-se à recepção.

Com licença. Oi, boa tarde. Ele precisa ficar na creche. Sou aluna. Eu trabalho e estudo. Deve ter um lugarzinho para ele. Não, meu marido não pode me sustentar. Não tenho condições financeiras para pagar babá. Não posso largar o curso! Nenhuma vaga mesmo? Eu preciso muito, moço. Ele é bonzinho, um a mais não vai fazer diferença. Por favor. Não dá?!

Saiu de cabeça baixa, segurando-o pelo braço. Ele, confuso com a situação, boceja e olha para mãe tentando interpretá-la. Ela coloca as mãos no rosto. Sussurra algo indecifrável consigo mesma. Inquieta, franze as sobrancelhas, entorta a cabeça, engole a seco. O menino continua a segui-la, sonolento.

E agora? Já perdi a primeira aula. Desse jeito, vou acabar perdendo mais um semestre. Vem, vamos para casa. Corre que nosso ônibus tá no ponto. Passa por baixo da catraca. Tem lugar ali. Senta aqui comigo. Tá com sono? Encosta em mim, vai demorar ainda.

A viagem é longa. Começa a garoar. Ele dorme no colo. Ela, agoniada, acaricia o rostinho pálido dele. Alguém escuta música alta nos bancos do fundo. Duas adolescentes matracam sobre a festa do último final de semana. Cobrador e motorista, aos berros, discutem sobre os jogos do campeonato brasileiro de futebol. As gotículas de chuva se destacam no vidro empoeirado da janela do ônibus. A noite cai. O problema é dela, só dela.