A lenta caminhada para adoção das políticas de inclusão

A USP é a única das três universidades estaduais que ainda não implantou cotas raciais

No começo de junho, a UNICAMP aprovou por unanimidade a adoção de cotas raciais para ingresso pelo vestibular, seguindo a tendência das universidades públicas estaduais e federais na adoção de políticas de inclusão. O debate em relação às cotas mobilizou estudantes e funcionários em frente à Reitoria durante a última reunião do Conselho Universitário no dia 8 de junho, quando aconteceu uma aula pública com representantes dos movimentos sociais para tentar responder à pergunta: afinal, por que a USP não tem cotas?

O JC conversou com Maria José Menezes, integrante e gestora do Núcleo de Consciência Negra (NCN), no qual deu aula em 2003 e faz parte da gestão desde 2009. Bióloga pós-graduada pela Universidade Federal da Bahia e pela Fundação Oswaldo Cruz, Zézé (como gosta de ser chamada) é funcionária USP desde 1990 e atua como técnica de laboratório no Instituto de Ciências Biomédicas. O NCN é uma entidade ligada aos movimentos sociais, pautando questões raciais que são discutidas na universidade, como o racismo, a LGBTfobia, violências de gênero relacionadas à mulher negra, entre outras questões.

JC: Há quanto tempo você participa dos movimentos sociais?

Minha participação nos movimentos é muito antiga, desde os 16 anos, quando tive consciência de minha raça e classe. Num país tão desigual quanto o Brasil não dá para ser apático diante desse quadro de exclusão que se perpetua para nós negros e indígenas para a manutenção dos privilégios das elites. Faço parte também da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, um coletivo que tem por objetivo intervir nas pautas relacionadas aos direitos das mulheres. Estamos passando por um momento histórico importante de retomada do conservadorismo e é por isso que nós temos que ganhar as ruas.

JC: Por que o debate sobre cotas é importante?

Porque a ideia de meritocracia é uma mentira. A sociedade brasileira coloca como incapaz uma pessoa que não consegue trabalho, como se ela não quisesse progredir na vida, e isso não é real. Nós temos uma elite no Brasil que sempre se valeu do trabalho escravo, desde a época do Império, e a riqueza acumulada pela exploração do trabalho de outro faz com que se sustente até hoje. É o que se chama de dívida histórica. O grande problema [quando se trata de acesso à educação] é você ter uma universidade bancada com o dinheiro público, mas que não dá acesso à maioria dos contribuintes que pagam por ela. Majoritariamente, somente as elites têm lugar nesses espaços, um crime perfeito, né? Então, quando falamos da inclusão de jovens negros, indígenas e pobres no espaço universitário estamos falando em mexer na estrutura de poder.

A elite é tão mesquinha, tão perversa e cega que utiliza todas as artimanhas para a manutenção de seu poder. Não existe mais respaldo jurídico e nem moral que sustente suas ideias e a única coisa que se sustenta hoje é a mídia, colocando intelectuais conservadores para justificar o que já foi desmentido ao longo do tempo.

A questão das cotas raciais nas universidades públicas já é uma realidade há mais de uma década. Desde então esses cotistas estão sendo avaliados e, ao contrário do que se pensa, a qualidade da instituição não cai. Diversos estudos acadêmicos demonstram o desempenho desses cotistas ao longo do curso como satisfatório e, quando comparado aos não cotistas, a taxa de evasão é menor. As possibilidades não são algo natural para as famílias desses jovens, é algo vindo com muita luta e, consequentemente, muito valorizado.

JC: De que forma às cotas raciais ajudam a promover a diversidade?

Existem vários segmentos que defendem a inclusão étnica e racial nas universidades, como instituições americanas e europeias, que pensam na diversidade apenas como uma forma de agregar conhecimento nesses espaços e fortalecer o capitalismo. A gente não interpreta assim, a realidade concreta do Brasil mostra que a inclusão racial vai trazer benefícios para população negra, que vai ser de fato reparada pela grande violência que é legado do processo de escravização. Essa população também poderá contribuir para o aumento da qualidade do ensino, uma vez que o sistema de ensino não é unilateral e o estudante também vai trazer o pensamento filosófico, a cultura das populações tradicionais, possibilitando o reconhecimento desses saberes. Até hoje a gente pensa que a contribuição da população negra e indígena no crescimento do país foi através do trabalho braçal, mas observando obras expostas no Museu Afrobrasileiro vemos que muitas tecnologias africanas [técnicas agrícolas, criação de gado, produção de ferramentas, entre outras] foram trazidas para o Império e depois apropriadas pelos senhores de escravos.

E quando nós, enquanto negros e indígenas, vamos para o espaço acadêmico a gente traz essa bagagem. E nós vamos pesquisar com propriedade, como sujeito, e isso é importante. Quando falo em mudança de paradigma, falo em mudar a universidade para melhor e a longo prazo, porque se fará necessária uma mudança na grade curricular para agregar o reconhecimento dessas culturas, o que não é simples. O que está em jogo não é somente o assento nas salas de aula, mas sim mudanças estruturais.

JC: Recentemente, a Unicamp também aprovou as cotas raciais de forma centralizadora, a UNESP há tempo já destina parte das suas vagas para pretos, pardos e indígenas. Por que a USP é a única entre as universidades estaduais que não adota essas políticas?

As federais também adotam de forma unificada desde 2012. É um processo que não tem volta, mas que por outro lado enfrenta segmentos muito bem enraizados na estrutura de poder. A USP já possui uma estrutura autoritária e antidemocrática, todos os espaços de poder de decisão da universidade estão atrelados a esses setores e os funcionários e estudantes, mesmo juntos, não conseguem definir nada para a instituição, apesar da importância da participação e pressão que exercem [diante da Reitoria]. Os movimentos sociais são constantemente silenciados pelo Conselho Universitário, então a USP não tem cotas não por falta de luta e sim porque não há interesse para a agenda política esse tipo de debate.

JC: Mas o Conselho Universitário estipulou como meta para 2018 ter 50% de seus ingressos oriundos de escolas públicas e que 35% destes sejam alunos pretos, pardos e indígenas. Você considera essa meta utópica ou possível?

A universidade não estipulou essas metas, ela tem que fazer isso e promover a inclusão. Dificilmente isso vai acontecer, porque a USP não fez a inclusão significativa dos alunos de escolas públicas e vai continuar justificando e postergando por não sofrer nenhuma sanção. Quando essas metas não são cumpridas, os setores que gerem a instituição não se sentem na obrigação de prestar contas à sociedade. Infelizmente, não há mecanismos jurídicos que os obriguem a cumprir essas metas. O Núcleo de Consciência Negra já entrou com processos contra o Conselho de Universitário e não deu em nada.

JC: Na última do Conselho Universitário (08\06\2017) esperava-se que fosse votado o Projeto de Cotas, o que não aconteceu. Agora a previsão é que isso seja discutido no próximo dia 22 de Junho. Essa informação procede?

A informação que nós temos, vinda do representante discente no Conselho, é de que o projeto de cotas – que nós já protocolamos diversas vezes na Pró Reitoria de Graduação e não se materializou – foi protocolado novamente para discussão nas unidades. Na prática o que acontece é o descaso com uma pauta importante. A única possibilidade é contar com a pressão exercida pelos movimentos sociais para desmentir os argumentos de que as cotas vão diminuir o prestígio da instituição, que os alunos cotistas não vão conseguir acompanhar as aulas, entre outros absurdos.