Cura do câncer vai além da sobrevivência

Significados atribuídos às experiências de vida influenciam recuperação dos pacientes

Por Ana Carolina Aires

Milena Dórea de Almeida, doutora em Psicologia Clínica pela USP, se propôs a verificar as condições psíquicas do tratamento do câncer, avaliando os significados que os adultos sobreviventes de tumor do Sistema Nervoso Central (SNC) na infância atribuíram às suas experiências de vida durante o adoecimento e após o término do tratamento oncológico, formulando novos dispositivos clínicos para o atendimento desses casos. “Não basta simplesmente entrar para as estatísticas como um sobrevivente do câncer, é preciso que a pessoa retorne psicologicamente bem, sabendo lidar com o trauma, com os efeitos e sequelas”, afirma Milena, a respeito da proposta de seu trabalho.

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), mais de 150 mil crianças são diagnosticadas com câncer por ano no mundo. Só no Brasil, são registrados mais de 12 mil casos anuais. Entretanto, se diagnosticados precocemente e tratados em centros especializados, 70% das crianças e adolescentes são curados, atingindo a idade adulta de forma saudável. Fora do contexto dos centros especializados, por outro lado, a taxa de cura é de 48%, indicando a falta de um acompanhamento médico mais amplo.

O estudo de Milena contou com a participação de 11 pacientes do Hospital São Rafael – Unidade ONCO, localizado na cidade de Salvador (BA). Com idades entre 19 e 36 anos, os entrevistados haviam sido diagnosticados com tumor no SNC na infância e concluído o tratamento oncológico há pelo menos cinco anos, não apresentando mais evidências da doença. Em entrevistas abertas, sem perguntas pré-determinadas, buscando o testemunho das experiências vivenciadas pelo sujeito a partir do “dia do diagnóstico”, Milena encontrou cinco temáticas recorrentes.

A partir da categorização, a pesquisadora conseguiu relacionar a vivência dos pacientes a conceitos da psicanálise. “As reações ao diagnóstico estavam muito ligadas à emotividade em relação ao sofrimento físico e à interrupção de atividades comuns à faixa etária em que se encontravam no momento do adoecimento. Excluídas do diálogo e incapazes de obter informações sobre sua situação, a criança sentia-se angustiada e com medo, tornando a situação traumática”, explica. Quanto aos sentidos e significados do adoecimento, Milena pontua a recorrência de relatos apontando o câncer como a saída do estado de “perfeição”, o que altera a relação dos pacientes com seu próprio corpo e personalidade, com suas atividades e com os outros.

“Retomo o conceito de trauma ao discutir a respeito da lembrança do tratamento dos entrevistados. Sem um trabalho de elaboração psíquica, ou seja, assimilação dos acontecimentos, o instante traumático se perpetua na posteridade”, explica o terceiro ponto. A vivência pós tratamento, por sua vez, ressalta a dificuldade do paciente curado em sentir-se digno, contribuindo para o sentimento de vergonha e falta de perspectiva para o futuro. “Esse período é caracterizado pelo afastamento e silêncio, que pode ser agravado a partir do momento seguinte: de percepção dos efeitos tardios, que são agravados nos casos de câncer no sistema nervoso central”, explica.

O psicológico também dói
Milena aponta em sua tese possíveis sugestões de novos dispositivos clínicos terapêuticos utilizados para tornar o diagnóstico, tratamento e cura do câncer infanto-juvenil uma experiência menos traumática ou psicologicamente desgastante. Dentre eles, estão:

  • Entrevistas de acolhimento psicológico em diferentes momentos do trajeto: diagnóstico, tratamento, pós tratamento e consultas de retorno;
  • Intervenções psicanalíticas na brinquedoteca da instituição;
  • Grupo “Escreva a sua biografia”, incentivando que a pessoa continue a fazer planos e escreva mais “páginas de sua história”;
  • Grupo de ajuda mútua entre os pacientes sobreviventes;
  • Participação dos psicólogos e psicanalistas nas reuniões de equipe dos hospitais, juntamente com médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, etc., com o objetivo de discutir em conjunto os casos clínicos, possibilitando uma abordagem integrada da situação do paciente e da doença.

“Foquei em sobreviventes desse tipo de câncer visando explorar de forma mais clara e ampla as implicações psicológicas do diagnóstico, tratamento e cura do câncer, já que esse tipo de tumor é geralmente muito agressivo, podendo contar com efeitos neurocognitivos tardios e sequelas incapacitantes, desafiando a oncologia pediátrica”, afirma Milena. Entretanto, a pesquisadora acredita que os indícios discutidos à luz da psicanálise Freud-lacaniana e dispositivos clínicos terapêuticos sugeridos podem ser observados e aplicados em qualquer caso de câncer infanto-juvenil.

“A corrente teórica que utilizo na análise preza pela linguagem como forma de conhecer efetivamente o sujeito do inconsciente. Quando falamos de psicanálise, analisamos o sujeito e suas experiências e não do câncer em si”, pontua. Dessa forma, a pesquisadora explica que pacientes com tumores cerebrais e que tiveram um tratamento muito agressivo, podem estar bem em termos psíquicos; ao mesmo tempo que um paciente com um câncer mais brando e tratamento tranquilo, pode ver aquela experiência como algo muito mais traumático, valendo-se da análise e acompanhamento psicológico da mesma forma que um paciente que teve câncer no SNC.