Extensão incentiva dança na FMUSP

Com ritmos diversos, o projeto Med Dança é espaço de descontração para os alunos de Medicina

Por Giovanna Querido e Victória Martins

Às terças e quintas, quando o relógio bate meio-dia, um grupo de alunos da Faculdade de Medicina (FMUSP) já se alonga no palco estreito do teatro do campus, apelidado de Teatrão. A música toca e eles se preparam física e mentalmente para a próxima hora e meia de dança: seja samba, funk, ballet ou forró, transparece a dedicação em aprender a coreografia e soltar o corpo ao ritmo.

Os médicos-dançarinos fazem parte do Med Dança, grupo criado em 2014 pelas alunas Amanda Lisboa, Érica Yanaguihara, Gabriela Amaral, Laura Caputo e Mônica Verdier, conhecidas como “matriarcas”. “Nós tínhamos essa base comum da dança, mas não encontramos esse espaço dentro do que a universidade tinha para oferecer”, explica Mônica. “Então vimos essa oportunidade de criar, de não nos contentarmos com o que existia.”

Transformado em extensão oficial da faculdade em 2015, o Med Dança abriu aos alunos a possibilidade de praticar uma atividade descontraída e relaxar em meio a uma rotina pesada de estudos integrais. Hoje, com mais de 30 integrantes, o grupo aceita alunos de todos os anos do curso, com ou sem experiência prévia na dança: basta ter curiosidade para aprender. “O Med Dança foi o espaço que a gente encontrou em meio ao caos que é a vida diária que a gente escolheu”, afirma Érica. “Eu não abro mão: vou ser médica, mas vou continuar dançando.”

Ao descobrir o prazer da dança, os membros do grupo podem até mesmo experimentar a criação de coreografias – às terças, o palco é só dos integrantes, que aprendem os movimentos uns com os outros. Já às quintas, professores contratados dão aulas de diversos estilos, “para tentar fazer todos se sentirem confortáveis,” de acordo com Beatriz Oliveira, atual diretora de Comunicação do Med Dança. Segundo ela, o dinheiro para remunerá-los provém do repasse realizado pelo Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC) e da verba adquirida com a venda de camisetas nas recepções aos calouros.

É consenso entre os membros que o projeto “deixa o dia mais leve”, como comenta Laura, algo com o que Mônica concorda: para ela, a atividade representa qualidade de vida e uma forma de entrar em contato com o próprio corpo. “Isso melhora o rendimento na aula, o contato com o paciente e a concentração. É um apoio”.

Rotina estressante

Érica, no 5º ano da graduação, salienta a importância de não se olhar apenas para o peso diário das atividades do curso, mas também para os aspectos positivos. “A faculdade traz muito esse discurso de só olhar os negativos – o stress, a falta de tempo, o fato de só estudamos ou deixamos de almoçar”, comenta. Para a aluna, essa rotina faz parte também de uma escolha individual e simboliza uma paixão pessoal, discurso que as outras matriarcas encampam: é uma constante entre os integrantes do Med Dança o quanto são felizes e como a dança é apenas mais um complemento para essa sensação.

“É extremamente importante a percepção que você tem da situação. Alguns estudantes vão ver a realidade do curso de forma mais negativa, mas outros conseguirão significá-las positivamente, enxergando uma recompensa e não se onerando emocionalmente”, afirma a psicóloga Fernanda Mayer, pesquisadora do Projeto VERAS (Vida dos Estudantes em Residência na Área de Saúde), da FMUSP. Sua observação exemplifica um dos dados levantados pelas pesquisas do grupo: ainda que grande parte dos alunos de Medicina apresentem sintomas de ansiedade, esse estado emocional não está diretamente ligado à felicidade.

No entanto, Fernanda alerta para a importância de mudar o discurso estigmatizado acerca da saúde mental dos estudantes de Medicina. Segundo ela, os alunos vivem sob o estigma de não poderem aparentar sentimentos de tristeza ou esgotamento emocional, pois isso costuma ser considerado sinal de fraqueza – algo que não é socialmente aceito para um médico.

De acordo com a psicóloga, não se culpabilizar pelos sintomas de depressão e ansiedade é um dos primeiros passos para mudar esse discurso. Fernanda comenta ainda que a criação de uma rede de suporte institucional, com uma equipe multidisciplinar de psicólogos, psiquiatras, psicopedagogos e assistentes sociais, além de alguns docentes e funcionários, que pensem políticas de prevenção de doenças, tratamento, reabilitação e promoção de saúde é essencial. Esse seria o caso, por exemplo, de retomar guidelines nacionais e internacionais voltados a pensar a qualidade do ensino médico, tal como as diretrizes curriculares brasileiras, que até 2014 contavam com o autocuidado como uma competência a ser desenvolvida no curso. Assim, a instituição ofereceria suporte aos fatores de stress recorrentes na graduação.

Segundo Fernanda, desde o ensino médio, o aluno sofre a pressão de colegas, familiares e professores para sempre tirar notas altas, tendo em vista a grande competitividade dos vestibulares para Medicina. Já nos primeiros anos do curso, muitos passam por situações-limite: mudança de cidade, dificuldade de relacionamentos sociais e afetivos, pressão, competitividade, coação por parte dos veteranos e residentes e queda nas notas, devido à grande carga de conteúdo.

Além disso, problemas financeiros também somam-se às dificuldades enfrentadas pelos estudantes ao longo da graduação, afetando diretamente suas  condições de estudo. Na época em que o teste foi aplicado, entre agosto de 2011 e agosto de 2012, por exemplo, o Brasil sofria certa instabilidade, mas nada comparado à crise atual. Hoje, contudo, a ansiedade ligada ao fator monetário tenderia a aumentar, já que, diante de uma pressão financeira, o cérebro se comporta de maneira semelhante a situações de fuga e ameaça, provocando dificuldades de se concentrar e fazer escolhas, conforme revela a literatura neurocientífica.

Para as mulheres, de acordo com Fernanda, é especialmente difícil, já que estão em um curso tradicionalmente formado por homens. Assim, além de lidarem com todas as pressões pelas quais passa um aluno comum de Medicina, elas se deparam, segundo a pesquisadora, com a constante necessidade de afirmar seu lugar de direitos, já que são consideradas corpos estranhos dentro de uma instituição historicamente patriarcal.

Além dos ensaios

Muitos dos integrantes do Med Dança já afirmaram que, ao longo dos anos, o projeto tornou-se uma espécie de alternativa a esse cenário de pressão e opressão cotidiano. Segundo Fernanda, a dança traz inúmeros benefícios físicos e emocionais, além de estimular um processo de autocuidado e zelo com o próximo essencial na prática médica.

Isso fica evidente nas atividades paralelas planejadas pelo grupo de dança, como os workshops abertos e o programa de iniciação científica Dança no HC. Neste último, projeto iniciado este ano por Amanda Lisboa, uma das fundadoras do Med Dança, alguns integrantes fazem apresentações no Hospital das Clínicas da USP e avaliam seu peso na humanização da relação com os pacientes. De acordo com ela, os estudantes já dançaram nas enfermarias de Dermatologia e Cirurgia Bariátrica e, hoje, eles aguardam o aval para iniciarem o projeto na ala pediátrica.

Outras práticas incluem aulas abertas àqueles que não são alunos de Medicina, como workshops de reggaeton e dança de salão. Ainda assim, a maior atividade do Med Dança é a grande apresentação de fim de ano, que em 2017 chegará a sua segunda edição. É o momento em que os integrantes “criam coreografias e têm a oportunidade de se expressarem da forma que quiserem”, como revela Beatriz. A apresentação é aberta ao público e simboliza uma possibilidade de divulgarem o trabalho do Med Dança.

Enquanto a data não chega, porém, o grupo pode ser acompanhado pelo canal no YouTube (Med Dança Fmusp), com os vídeos de todas as coreografias. Seja na tela ou pessoalmente, eles demonstram como arte e ciência não precisam estar distantes.