Sobre Flips, mobilidade e asas

Por Ingrid Luisa

No ônibus de volta da Flip, a demora incessante levava minha cabeça a mil. Nos meus fones de ouvido, um kpop qualquer que eu nem sabia qual era. Ainda restavam 6 horas para chegar em São Paulo. Tinha muito o que fazer: volta às aulas no outro dia,  uma mala gigante para desfazer, casa vazia para arrumar e ainda muito o que escrever para uma coluna colaborativa de um site que sairia no dia seguinte. Mas as memórias da Festa Literária Internacional de Paraty não saiam da minha vista. Eu era outra pessoa depois daquela experiência. A ‘Flip da diversidade’, que teve uma presença maior de mulheres autoras que homens e homenageou um escritor negro, colocou em pauta racismo, lugar de fala, feminismo. Também ouvi debates sobre esquecimento, aceitação, coragem, estupro. A rainha Conceição Evaristo encerrou a festa dizendo que a língua culta, que tanto se preza, é na verdade uma “língua oculta”, e eu não poderia estar mais contemplada do que naquele momento.

De repente, meu celular, que há muito estava sem sinal, ganhou vida de novo. O WhatsApp e o Messenger não paravam de atualizar. Mensagens não paravam no grupo da coluna, e eu queria ao menos conseguir dizer pras outras meninas que terminaria tudo quando chegasse, não importando a hora, a postagem não atrasaria por minha causa. Mas elas não estavam me cobrando, e queriam mesmo era saber da Flip. Com toda minha empolgação eventual, estava escrevendo textões EM CAPS LOCK que não conseguiam descrever um terço do meu estado pleno de espírito. Mandei uma foto minha no centro histórico, onde foi realizada toda a feira, em frente a casarões bonitos e sob um chão de pedras construído há muitos e muitos anos. Mas, naquele momento, dei-me conta de que as pedras não niveladas e pontiagudas daquele centro histórico atingiram minha mente e meu coração, pois uma das minhas amigas da coluna é cadeirante.

Eu realmente não sabia se deveria escrever sobre isso. Meu local de fala é zero, e eu era uma ignorante em relação a acessibilidade. Me senti muito mal depois de ter mandado a foto, mas não sei se me sentir assim foi certo. Chorei no ônibus, e o medo de me interpretarem errado era enorme. A música aos meus ouvidos, que antes nem chamava minha atenção, agora estava alta e clara, mesmo Jungkook a cantando em coreano: “Mesmo que esteja se despedaçando/ Não fuja nunca”. Não sabia se aquilo era pra mim ou se na verdade não tinha nada a ver (ainda não sei, na real), mas decidi que iria escrever sobre o assunto.

Segundo a Lei Brasileira de Inclusão (Estatuto da Pessoa com Deficiência), multas são cobradas em lugares que não oferecem acessibilidade para pessoas com locomoção reduzida, como cadeirantes, idosos e grávidas. Antes, situações consideradas infrações — como falta de vagas de estacionamento para cadeirantes –, agora são crimes, e possuem punições mais severas. Mesmo assim, grandes empresas ainda preferem pagar multa a tornar o local acessível, alegando ter um “custo menor”, o que demonstra que ainda há muito a ser feito. Mas o caso das cidades históricas, como Ouro Preto, Goiás Velho, Olinda ou mesmo Paraty, é ainda mais complexo, pois os monumentos tombados não podem ser mexidos.

Isso nunca foi verdadeiramente uma questão para a Flip, mesmo sendo realizada em Paraty. Até o ano passado, o auditório principal da festa era construído na parte nova da cidade, em uma tenda em cima de tablados de madeira que deixava o lugar plenamente acessível. As ciclovias ao longo do canal possibilitam ao cadeirante percorrer uma belíssima área do litoral. Mas, em 2017, a crise que vem abatendo sobre a feira pesou, e ela só prosseguiu existindo a duras penas, com o orçamento reduzido desde 2014 em cerca de um milhão de reais por ano. Por isso, resolveram não mais construir a tenda que abrigava as atrações principais da feira. A solução encontrada foi criativa: adaptaram a Igreja Matriz da cidade, transformando-a em um grande auditório, mesmo contra vários protestos de católicos fervorosos. O padre responsável pela paróquia cedeu o espaço, só provando o quão importante é a festa para a cidade. Muitos alegaram ser problemático se discutir certos temas com imagens de santos gigantescos ao lado, mas um problema muito maior, e que não foi levado em consideração, é que o auditório ser na Igreja Matriz tornou as atrações parcialmente inacessíveis, pois ela está localizada bem no meio de um centro histórico pedregoso e inviável para quem utiliza uma cadeira de rodas.

De acordo com o ‘Caderno Técnico nº 09 – Mobilidade e acessibilidade urbana em centros históricos’, disponibilizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2014, “Acessibilidade urbana e patrimônio cultural são temas complexos que exigem um tratamento cuidadoso, não existindo receitas prontas a serem aplicadas. Com vistas à concretização dos direitos à acessibilidade urbana, não é possível desenvolver uma teoria que possa ser aplicada a todos os espaços consagrados patrimônio cultural. Cada caso deve ser estudado em profundidade, a fim de que se alcancem soluções específicas, úteis e adequadas.”. Apresentando possibilidades de intervenção, planos orçamentários, ajudas de como pensar a acessibilidade, ainda fica claro como tudo isso teria um custo bem elevado, e em um momento de crise como o atual, infelizmente parecem questões totalmente impensáveis. A corda sempre arrebenta do lado mais fraco, afinal.

O pesquisador Oscar Luís Ferreira, autor da tese ‘Patrimônio Cultural e Acessibilidade’, concluiu que adaptações nos patrimônios históricos são possíveis, e que, quando essas adaptações possam causar impacto sobre a autenticidade do bem histórico, a criação de meios alternativos para a visitação do local é a medida a ser tomada. Ele afirma ainda que se mesmo assim o espaço for considerado “inviável” para pessoas com mobilidade reduzida, a visitação deve ser negada a toda a população, para que não se crie uma situação de prioridade a certos cidadãos. Ciane Feitosa Soares, em sua dissertação de mestrado pela UNB, ‘Acessibilidade ao Patrimônio Cultural: políticas públicas e desenvolvimento sustentável’, afirmou que “as intervenções que promovem a acessibilidade não devem ser enfocadas como problemas a serem resolvidos, mas como uma qualificação do ambiente e o reconhecimento de um objetivo social a ser alcançado.” Não é um privilégio, acesso amplo a essas áreas são direitos que precisam ser garantidos.

Cadeirante e criador da ONG Turismo Adaptado, Ricardo Shimosakai declarou que no Brasil as pessoas com mobilidade reduzida não são vistas como consumidores, ao contrário de outros países, que faturam bilhões oferecendo serviços para esse público. Parece que foi exatamente isso que ocorreu na Flip desse ano, por problemas estruturais e financeiros. O centro histórico de Paraty até é acessível a cadeirantes através de um passeio de charrete bem tradicional, mas numa Flip cheia de filas e turistas por todo lugar, as charretes acabaram sem acesso à rua da Igreja. E um grande público impossibilitado de ver as atrações principais da feira.

Quando cheguei em casa, ao colocar a mala no quarto e começar a desarrumar, achei uma camiseta da linha ‘Poeme-se’ que eu havia comprado na festa. Na estampa, uma imagem de Frida Kahlo e a mensagem “Pés, para que os quero, se tenho asas pra voar”. Frida era uma gênia, uma mulher a frente de seu tempo, evoluída em um nível que nunca serei. Mesmo sempre em busca de asas para voar, infelizmente os pés ainda se configuram em um fator crucial para uma plena locomoção na maioria das cidades do Brasil. Só nos resta continuar lutando para que, um dia, as asas bastem.