A única arma que temos é o incitamento ao diálogo, alerta Lilia Schwarcz

(Foto: Ingrid Luisa)

Curadora adjunta do MASP fala sobre arte e comenta a onda moralizante pela qual passa o Brasil atualmente

Por Beatriz Arruda

Recentemente, o debate sobre censura na arte cresceu depois da exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” ser encerrada antecipadamente pelo Banco Santander, financiador da mostra, após protestos. Uma das justificativas era que as obras expostas, dentre elas “Cenas de interior II”, de Adriana Varejão, eram ofensivas à moral. O JC conversou com Lilia Schwarcz, professora titular do Departamento de Antropologia da USP, historiadora e curadora adjunta do MASP sobre o assunto. Além de comentar o caso, ela falou sobre sua trajetória e arte no Brasil.

JC – Você é curadora adjunta do MASP para assuntos relacionados à história. Como surgiu o convite e qual é exatamente a sua função?  
Lilia Schwarcz – Faço parte da equipe que foi montada pelo Adriano Pedrosa, diretor artístico do MASP. Entendo que o meu convite teve a ver com uma exposição que abri junto com ele chamada Histórias Mestiças, no Instituto Tomie Ohtake, em 2014. Logo depois,  Adriano foi convidado para assumir o cargo e, na sequência, me chamou. Além dos curadores,  que ficam lá cotidianamente, existem os curadores adjuntos, que tratam de alguns setores específicos. O meu é História, porque o Adriano montou um modelo para o museu entorno, justamente, das histórias. Por exemplo, houve um ano em que todas as mostras se voltaram para a questão da infância. Agora, em outubro, nós abriremos as Histórias da Sexualidade.  

De que modo o seu trabalho como historiadora e antropóloga contribui para o seu papel como curadora?
Muito. Sempre brinco que, como crítica de arte, sou boa historiadora e antropóloga. Não me considero crítica de arte. Venho me formando, mas não tenho essa formação. E não falo isso com falsa humildade, fica claro na minha posição no MASP. Quer dizer,  sou curadora adjunta para histórias.
Nós, cientistas humanos, somos muito refinados no trato com documentos escritos, e na hora de lidarmos com os registros visuais, achamos que imagem é só decoração. Eu, ao contrário, tenho buscado desafiar essa lógica. Por que nós colocamos as imagens nos apêndices? O que é um apêndice na lógica de um livro? Uma parte dispensável e que não interfere no argumento. Não penso que seja assim. Acredito que é preciso dialogar com as imagens, perguntar origem, localização, dimensão. Como antropóloga e historiadora, uso as imagens como registros dos meus protagonistas e também dou historicidade a elas.

Qual a importância da narrativa histórica dentro de uma exposição?
Varia muito. Para começar com um exemplo mais claro, exibições de cunho histórico, com documentos e registros, têm uma evidência histórica importante. Mas como todos os documentos, a arte é sempre uma manifestação política, então o fato de você, de alguma maneira, tratar desses objetos em contexto ajuda muito. Minha parte nessas exposições, de alguma maneira, é incluir a história. Não de forma a transformar a obra num produto, mas de maneira a politizar a obra e tratá-la como um conhecimento situado: o que saber sobre o autor, contexto, obra, relevância.
Fiz um post em minha página do Facebook sobre a Adriana Varejão e a consistência e importância de sua obra que estava presente na mostra Queermuseu. “Cena de Interior II” é um diálogo e uma pesquisa da Adriana com Debret e com as shungas japonesas. Quer dizer, ela é uma artista de muita consistência e pesquisa. Isso limita e explica com todas as aspas toda a obra da Adriana? Não, porque você pode vê-la sem isso, mas ajuda a mostrar qual é o projeto, qual é a ética e a filosofia dessa artista.

Obra “Cena de Interior II”, de Adriana Varejão, que foi alvo de críticas nos protestos contra a exposição Queermuseu. (Reprodução)

Sobre a exposição Queermuseu, você se pronunciou nas redes sociais dizendo que a obra de Adriana Varejão, uma das que mais foi criticada, tem um viés histórico e documental importante. Qual é a sua opinião sobre essa corrente de moralismo e intolerância que cresce no Brasil?
Penso que como antropóloga e cidadã, nós temos que lamentar muito. Lamentar, combater e vigiar essa onda moralista e normatizante que temos no Brasil.
Sabemos que esse é um processo totalmente seletivo. Meu post sobre a Adriana Varejão foi um dos que foi censurado porque tinha a imagem do quadro. Na verdade, a obra dela foi censurada.  As pessoas dizem que isso é um robô, mas sabemos que o robô tem lá a sua inteligência e que eles funcionam na base de denúncia e delação. Então a pessoa anônima que denunciou a tela da Adriana, não denunciou, por exemplo, a montagem que o Roger, da banda Ultraje à Rigor, fez sobre a foto da Adriana Varejão, essa sim, ultrajante. Era uma foto da artista com um falo no rosto, cruzes nos olhos e com a legenda escrito “Puta”.
Seguindo o filósofo Foucault, nós sabemos que censurar também é uma forma de divulgar. Esse movimento de censura e de aproximação é conhecido na história e o que me preocupa muito no movimento moralizante e normativo que nós vivemos em várias áreas é que, muitas vezes, ele é feito de forma anônima e na base da acusação alheia. Penso que está na hora de, pelo menos, nós assumirmos as acusações. Quando escrevo um post, todo mundo sabe quem está falando, e quem censura se esconde por detrás de uma certa moral. Nenhuma forma de censura vale à pena.Ac redito que censurar não é uma maneira de apreendermos criticamente o mundo. A única forma de lidarmos com as opiniões diferentes é com o incitamento ao diálogo. É a única arma que temos.

O principal argumento das pessoas que pediram o fim da exposição, e do próprio Santander, era de que não se devia permitir uma arte que desrespeitasse ‘símbolos, crenças e pessoas’. Existe limite para a arte?
Penso que não, como não existe limite para a crítica. Acho que sou mais contra o Santander do que contra o MBL, porque eles tinham uma posição. Democracia nunca foi um exercício de direito com os iguais, certo? A dificuldade da democracia é lidar com aquele que pensa diferente. Se o pessoal vai à rua e protesta, eles estão no direito. Pior é o Santander que não segurou uma mostra que ele aprovou. Acredito que não há limites à nossa manifestação. No “Histórias da Sexualidade”, que vamos abrir no MASP, temos figuras da Grécia Antiga e pré-colombianas com falos e tetas imensas. O que nós vamos dizer? Vamos censurar os romanos? Colocar uma tarja na Afrodite? Não é essa a questão. A arte não pode ser vista dessa maneira. Por outro lado, é preciso saber aonde vamos levar nossas crianças ou não. Ninguém obriga os pais a entrarem no museu. No MASP, por exemplo, já tínhamos decidido antes mesmo dessa confusão colocar que a exposição não é indicada para menores. Entretanto, não cabe a nós proibir e cabe aos pais e educadores decidirem como vão discutir essas questões com as crianças. Agora, a obra de Adriana Varejão, por exemplo, não é endereçada a um livro infantil. Acredito que nós todos somos pessoas de arbítrio e que temos que exercer a nossa capacidade facultativa de opção e escolha.

“Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva”, de Fernando Baril, também presente na mostra Queermuseu. (Reprodução)

Existe risco para a sociedade quando uma exposição é fechada por questões individuais?
Não sou uma pessoa de neuroses. Acho que o que a sociedade brasileira tem pedido de nós todos é menos passividade e mais vigilância. A posição que o Santander tomou foi importante para mostrar como, claro, todo mundo que está vivo sofre perigo. Mas acho que a resposta mostrou que nós não estamos mortos e que boa parte da sociedade surgiu contra esse tipo de reação ou ao menos pediu que o Santander se explicasse. Isso revela que nós não temos um perigo iminente. A não ser o perigo de estarmos vivos.

Observando a história, vemos que outros movimentos de transgressão na arte, como a Semana de Arte Moderna, também causaram polêmica. Diante disso, o que vimos é normal, porque o novo assusta, ou preocupante, considerando o cenário de crescente intolerância no mundo todo?
Mesmo sendo historiadora, sou a primeira a dizer que nós podemos nos inspirar, mas afirmar que o que aconteceu no passado é igual ao presente é muito complicado. Até cria em nós uma certa passividade. Acredito que o que aconteceu em 1922 foi um movimento novo em um ano que estava prometendo muita abertura. A primeira República, naquele contexto, já tinha passado pelos momentos dos regimes militares e golpes. Também foi antes de 1930, então vivia-se um momento mais tranquilo. Mesmo assim, a Semana propunha muita novidade e causou reação por isso, escancarada numa sociedade paulistana bastante fechada.
O que nós estamos vivendo agora é um momento muito diferente, na minha opinião. Nós viemos de um grande período de liberdades democráticas. Desde 1988, vivemos um regime de eleições nas urnas e passamos, agora, pelo impeachment. A história dirá, mas acho que o procedimento que levou ao Impeachment é  totalmente improcedente e, mais ainda, a forma como ele ocorreu, de alguma maneira, permitiu que nós abríssemos a guarda para um regime de exceção. Considerávamos que tínhamos direitos garantidos, mas estamos vendo que eles não estavam consolidados. Estamos vivendo agora uma crise muito específica e esse fenômeno que nós vimos no Santander é um corolário desse momento de retrocesso. Pode ser que tenha alguma serventia, porque, muitas vezes, nós precisamos de uma boa crise para abrir os olhos e, talvez, ele possa ter aberto os nossos olhos para que a sociedade civil se mobilize contra esse tipo de censura. Censura, eu diria, própria dos regimes autoritários e ditatoriais.

“Adriano bafônica e Luiz França She-há” , de Bia Leite, outra obra que causou polêmica. (Reprodução)

Neste mês, a mostra ‘Pedro Correia de Araújo: Erótica’ do MASP foi acusado de censura por conta dos panos pretos que cobriam os desenhos eróticos. O que você achou dessa medida?
O MASP é um museu que está, no momento, com exposições abertas ao público escolar e o nosso receio era, justamente, que as escolas viessem e tivessem esse tipo de problema. Nesse caso, ninguém está proibido de ver. O problema é retirar de circulação. Outros recursos, acredito que são válidos. Por exemplo, a exposição do MASP das prostitutas do Miguel Rio Branco também se encontra em um lugar mais fechado, que foi um recurso da curadoria. Então a pessoa vai ter a oportunidade de ler sobre o que se trata essa mostra e, se quiser, entrar. Os museus e galerias não são lugares em que você é obrigado a entrar, então talvez seja papel da curadoria alertar. Mas é também papel do público saber aonde entra e saber que tem escolhas.

Como você vê a relação da população brasileira com a arte?
Em se tratando de arte, é preciso incitar mais os brasileiros. Não me refiro aqui só à arte que está nos acervos de museus, me refiro à Arte com A maiúsculo, dizendo assim, uma arte mais ampla. Não partilho, por exemplo, de que existe oposição entre arte e artesanato. Parto do princípio de que os termos que nós classificamos são carregados de significados e que temos que combatê-los. Sabemos muito bem que quando falamos de arte, ela é individual, identificada e reconhecida no cânone, e quando falamos de artesanato, é popular e coletiva. Mas acho que sim, temos que incentivar muito mais o ensino de artes visuais e plásticas nas escolas. É só pensar como as telas acadêmicas aparecem nos livros didáticos. Sempre digo que a tela do Victor Meirelles teria que aparecer não em 1500, no descobrimento do Brasil, mas no século XIX, porque foi uma encomenda de Pedro II para destacar seu Estado.
Acredito que os museus precisam ser mais abertos e convidativos na sua arquitetura. Em geral, as pessoas não se sentem convidadas a entrar neles, porque acham que são casas só de uma população que entende. Mas não há uma forma de entender arte. Por isso, advogo muito que a gente pratique uma abolição da divisão entre arte e artesanato, entre arte popular e arte de uma forma geral.

Comparando com a Pinacoteca e com o MIS, o preço do ingresso do MASP é o mais caro. Você o considera acessível para a população?
Diferente desses exemplos, o MASP é privado e precisa se sustentar sem o apoio do Estado. Isso é difícil, sobretudo em um museu que tem o projeto bastante arrojado de não só apresentar o seu acervo, mas emprestar obras nacionais e internacionais. Isso é um preço imenso. Mesmo assim, penso que o preço não é acessível. Uma família de quatro pessoas já vai gastar uma fortuna para visitá-lo. Acredito que estamos fazendo esforços para pressionar nesse sentido. Acho que quanto mais a população que pode pagar comparecer ao museu, mais nós vamos poder abri-lo para uma população que, de fato, não pode pagar. Uma coisa que está acontecendo, e que eu acho maravilhosa, é que o museu fica lotado nas terças-feiras [dia da semana em que a entrada é gratuita]. O que é uma comprovação da necessidade. Acredito muito nessa nova gestão e na sensibilidade dela a esse tipo de demanda.