Como é ser atleta universitário e trans?

Mudanças na regulamentação do esporte universitário não garantem participação de transexuais

Por Giovanna Querido

Apesar da maioria das organizações universitárias esportivas possuírem, em seu regulamento, um parecer permitindo a participação de transexuais nos times com o gênero que melhor se identificarem, a NDU (Novo Desporto Universitário), órgão responsável pelo maior campeonato universitário, ainda não tem um posicionamento em relação a isso.

O estudante Guilherme Abreu, aluno de Publicidade e Propaganda da Belas Artes, jogava no time de handebol feminino, mas não participou do JUCA (Jogos Universitários de Comunicações e Artes). Esse caso suscitou, entre os organizadores do JUCA, uma discussão e pesquisa dos parâmetros internacionais da participação de atletas trans, conforme afirma Gabriela Nogueira, atual presidente da LAACA (Liga das Atléticas Acadêmicas de Comunicações e Artes). Adotou-se, então, o posicionamento de que os atletas podem jogar no JUCA com o gênero que se identificam. Outras organizações, como LAAUSP (Liga Atlética Acadêmica da Universidade de São Paulo) e BIFE, adotaram o mesmo parecer. Atualmente, quase todos os campeonatos e inters da USP já aceitam pessoas transexuais ou estão no processo de alteração do regulamento.

Guilherme, no entanto, pondera ainda sobre uma série de obstáculos para a sua participação: “meu RG possui meu nome civil e meu gênero como feminino; a dificuldade de aceitação de outras faculdades e atletas, assim como a preparação de juízes; e o fato de o regulamento do JUCA querer seguir o mesmo  das Olimpíadas pras pessoas trans, sendo que somos alunos/atletas muitos, eu incluso, não terem o nível de testosterona pro regulamento olímpico.”

Transfobia

Mesmo após regularização jurídica, Thomas Hackmann Pereira, estudante de Letras da UNIP (Universidade Paulista), afirma que o maior problema é a ignorância e o preconceito. “Isso está por trás de todas essas questões relatadas”, diz. Ele conta que tem medo de tomar banho em locais em que não há divisória entre os chuveiros masculinos e sofrer algum tipo de agressão ou assédio. Nesse sentido, o aluno da Belas Artes questiona se os jogos universitários estão de fato preparados para ter pessoas trans jogando.

Thomas Pereira pretende competir seu primeiro triathlon em breve (Foto: Giovanna Querido)

Hoje, apesar de não jogar em nenhum time universitário, Thomas se dedica à prática de corrida e ciclismo. “Ano que vem vou participar da minha primeira prova de triathlon e quero, no futuro, poder concluir um Iron Man”, afirma. Cada vez que vai se inscrever em uma corrida de rua, precisa mandar um e-mail para a organização avisando que sua  inscrição estava em nome de Thomas, mas que retiraria o kit com o documento em seu nome de registro. Tudo isso devido à grande demora no processo de retificação dos documentos tanto de nome como de gênero.

O medo e a falta de suporte continuam afastando transexuais do esporte. “Sofremos preconceito quando as pessoas sabem de nós, como em qualquer outro ambiente.”, conta Thomas. Esse mesmo medo de ser exposta e apontada como diferente, também fez Gabriela Perini – pesquisadora formada em Filosofia na FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) e educadora no cursinho popular da ACEPUSP –, não entrar em um dos times de vôlei da USP. Optou por fazer parte do time de rugby Tsunami, que agrega pessoas de vários cursos. Chegou até a jogar um amistoso pelo time e, apesar do ótimo convívio com as outras jogadoras, o sentimento de insegurança se manteve. “Nada garantia que em outro jogo eu não sofreria alguma forma de agressão. Mesmo com o time se dispondo a reagir ao meu favor, nunca é uma situação fácil de se encarar.”

Gabriela Perini é hoje educadora no cursinho Popular ACEPUSP (Foto: Daniel Miyazato)

Em um âmbito maior, o afastamento é ainda mais evidente. Mesmo com a recente mudança do regulamento pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), no início de 2016, nenhuma pessoa transsexual já esteve em uma Olimpíada. Segundo a entidade, agora homens transsexuais podem participar de seus eventos sem restrição, enquanto mulheres trans precisam apenas ter a quantidade de testosterona controlada para poder competir em equipes femininas. Mais precisamente, elas não podem ter mais de 10 nanomol do hormônio por litro de sangue nos 12 meses anteriores à competição. Além disso, a cirurgia de mudança de sexo  não é mais obrigatória.

Mudança regulamento

Para Thomas, a mudança da resolução sobre atletas transexuais em competições oficiais pelo COI foi extremamente importante. A cirurgia de redesignação sexual (mudança de sexo) é extremamente custosa. Apesar do SUS realizar os procedimentos desde 2008, a fila para essas cirurgias ultrapassa 10 anos. Fora do sistema público de saúde, o custo de uma vaginoplastia para uma mulher trans, por exemplo, tem o custo equivalente a pelo menos R$ 30.000.

De acordo com a ABCD (Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem), não há uma única característica biológica determinante do sexo para influir no ponto de vista de esportes competitivos. Em 2000, a determinação do sexo cromossômico foi abandonada como critério para competição justa no esporte. Segundo o órgão, no entanto, as diferenças sexuais entre homens e mulheres se manifestam nos níveis de testosterona e estrógeno, sendo a testosterona responsável por aumentar a força e massa muscular, tamanho ósseo, conteúdo mineral e hemoglobina.

Existe uma diferenciação entre os hormônios ministrados em cada um dos casos de redesignação sexual. Para os atletas transexuais MpF (Masculino para Feminino), os hormônios estrogênio e anti-androgênio não são proibidos no esporte pelo doping. Já o androgênios fornecido no caso de FpM (Feminino para  Masculino), requerem que os atletas passem por constantes exames de doping para garantir que a dosagem esteja abaixo ou igual a 10 nanomol, pois é comprovado que tal substância é capaz de melhorar o desempenho quando aplicada em grandes quantidades. O que suscita o debate sobre a elegibilidade de atletas transexuais competir com atletas não-transexuais.

“A verdade é que o genital da pessoa não vai interferir em nada. A hormonização de mulheres trans faz com que o nível de testosterona delas seja menor que a média encontrada em mulheres cis e isso faz com que as ‘vantagens físicas’ desapareçam”, afirma Thomas. Gabriela também entende a  diferenciação de gênero como parte de uma construção social: “O grande problema que quero mostrar é que não se pode utilizar o desempenho corporal para discutir política e sociedade. No momento em que se separam as competições entre feminino e masculino, não se trata mais de uma questão biológica, mas sim, política e social.”

Para a pesquisadora da FFLCH, existe também um recorte de gênero machista ao abordarem a questão do  desempenho corporal atrelado aos esportistas transsexuais. “As pessoas trans mostram como a divisão de competições esportivas entre femininas e masculinas são meramente políticas, inspiradas na velha lógica da submissão social da mulher por conta de seu ‘destino biológico’.”