O corpo que “conversa” no ciclo menstrual

Descobertas desmistificam tabus da menstruação e identificam alterações sensitivas na mulher 

Por Ana Carolina Aires e Rafael Battaglia

Uma dissertação de mestrado recentemente defendida por Bruna Alves no programa de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) apontou correlações entre os limiares de sensibilidade gustativa, olfativa e somestésicas (térmica, dolorosa, tátil, vibratória e elétrica) e concentrações dos hormônios estrógeno e progesterona no corpo durante as fases menstrual, folicular (período fértil que antecede ovulação) e lútea (período pós-ovulação e pré-menstrual) do ciclo feminino.

A avaliação foi realizada com 39 mulheres, com idades entre 19 e 47 anos, a partir da coleta da saliva para análise dos níveis hormonais e aplicações de testes sensitivos quantitativos (TSQ). Bruna encontrou oscilações sensitivas em todas as modalidades, de acordo com o momento do ciclo menstrual das mulheres avaliadas. O limiar utilizado pela pesquisadora indica a concentração mínima na qual a sensibilidade gustativa, olfativa ou somestésica pode ser percebida pelo corpo. Ou seja, quanto mais alto o limiar, menos sensível o organismo está ao elemento avaliado naquela fase menstrual e vice-versa.

 

 

Resultados

Além de análises de redução e aumento de sensibilidade, o estudo de Bruna possibilitou verificar a influência dos hormônios estrógeno e progesterona na variação sensitiva observada. “Quanto mais alto o nível de estrógeno, menores os limiares de dor e táteis, ou seja, mais sensível a mulher está a estes fatores. Esse achado pode auxiliar no esclarecimento do papel neurológico desse hormônio no sexo feminino, podendo estar por trás da maior prevalência de dor em fases do ciclo menstrual que apresentam aumento do nível de estrógeno, como a fase menstrual”, pontua.

A progesterona, por outro lado, influi muito nos fatores gustativos e olfativos. Comprovou-se a relação entre níveis de progesterona e limiares de salgado, bem como diminuição da sensibilidade ao doce. O hormônio também pode estar associado a depressão em mulheres ansiosas na fase lútea. Nas outras modalidades investigadas, foi possível identificar evidências da influência simultânea do estrógeno e da progesterona, indicando correlação direta com o ciclo menstrual e com as alterações de concentração hormonal específicas de cada fase.

 

arte: Mariana Rudzinsk 

Ouça: é preciso atenção para interpretar seus sinais

Clarice Heiko Muramatsu, doutora em Enfermagem pela EE-USP, ao observar a queixa de pacientes em relação aos incômodos da menstruação e da síndrome tensão pré-menstrual (conhecida popularmente como TPM) nos ambulatórios, dedicou-se exclusivamente ao estudo das mulheres e da essência desse fenômeno em suas vidas. A partir de duas perguntas básicas “Como é para você ter a síndrome da tensão pré-menstrual?” e “Descreva como é conviver com a síndrome da tensão pré-menstrual”, Clarice entrevistou seis mulheres, entre 18 a 44 anos, traçando formas de análise e cuidado com a mulher centradas em dimensões que detêm pouca atenção dos especialistas: a humana e existencial.

“O interesse em realizar este estudo surgiu, primeiramente, da minha experiência como mulher que vivencia a síndrome da tensão pré-menstrual e os desconfortos de sua presença”, afirma Clarice. Observando suas pacientes, a pesquisadora e enfermeira percebeu que ouvir suas queixas parecia ter efeito positivo, mas sentia-se limitada ao buscar formas de realizar seu papel profissional, auxiliando-as por meio de instrumentos clínicos. A literatura médica clássica mostra que os autores estão preocupados com os fatores biofisiológicos relacionados à saúde da mulher e não com a questão da subjetividade daquelas que vivenciam a tensão pré-menstrual. “Os sentimentos e as atitudes da mulher neste período não são levados em consideração”, afirma.

Em uma de suas pesquisas, Clarice constatou que a TPM interfere em 82,4% da população no que diz respeito ao ambiente familiar, em 71,4% da população quanto ao ambiente profissional e 64,2% no social. “Acredito que o cuidado de enfermagem deve estar voltado não somente para os aspectos físicos, mas também para os emocionais, que interferem nas diversas esferas da vida de uma mulher”, pontua. Pensando nisso, Clarice entrevistou seis mulheres e desenvolveu análises pertinentes, dividindo-as em três frentes principais: o corpo nas relações com o mundo, a angústia da situação e a necessidade de ser cuidada.

foto: Claire Castelano

O corpo e as relações

A pesquisadora afirma que o corpo se faz compreender por meio dos gestos. “Ele traduz a forma de estar no mundo, transparecendo o que a mulher que é naquele momento. A forma de expressar-se: falando, gritando, silenciando, exaltando-se, agredindo, mostra um mundo interior muito intenso e cheio de significados”. Clarice explica que no período da TPM a mulher apresenta um novo modo de relacionar-se consigo e, consequentemente, com o seu arredor.

Com trechos de relatos das entrevistadas, a estudiosa destaca a percepção da mulher que vê o mundo de forma completamente diferente nesse período e sente como se perdesse momentaneamente sua identidade, justamente por conta do “tabu” acerca de sua situação. A falta de autoconhecimento e dificuldade de lidar seu “eu” momentâneo é resultado do silenciamento que essas mulheres sofrem dentro da sociedade durante o período menstrual, impossibilitando-as de conhecer os padrões de seu ciclo e as reações de seus corpos.

foto: Claire Castelano

A angústia da situação

“As mulheres durante a TPM sentem-se ‘marginalizadas’ e desprezadas. Elas vivenciam a preocupação de viver sem ser elas mesmas, deixando-se dominar pelo próprio corpo mês a mês, gerando angústia e sofrimento de não poder assumir todo o potencial do seu ser”. Clarice aponta que a angústia se estabelece quando a mulher percebe suas ações e sentidos não usuais e não se sente sob controle. “Esse modo de vida impessoal impossibilita a mulher de estabelecer um envolvimento maior consigo mesma e com outros”, pontua. 

foto: Claire Castelano

O cuidado consigo

Clarice reforça a necessidade de tratar a TPM como uma síndrome, propondo uma mudança na sigla de TPM para STPM. A falta de cuidado clínico com a Síndrome da Tensão Pré Menstrual faz com que ela seja muito mais difícil de ser tratada, refletindo o conceito ideológico da Síndrome da Histeria – suposta condição médica peculiar da mulher durante o ciclo menstrual, defendida durante o século XIX. A mulher, por conta disso, sente-se envergonhada e culpada por apresentar condições diferentes nesse período, fazendo com que ela não busque ajuda, acreditando que o problema não deve ser verbalizado e, sim, ocultado.

A pesquisadora ressalta a necessidade de realmente ser ouvida por profissionais. “O não se importar, não respeitar, não ter consideração com o outro é um modo deficiente de cuidado”, expõe. Esse fator fica claro na frase de uma de suas entrevistadas e recorrente no relato das pacientes: “Eu acho que os médicos, por ser uma ‘coisa assim’, eles não dão importância”. Clarice afirma que, além disso, o autoconhecimento apontará melhores formas de superar os inconvenientes da Síndrome da Tensão Pré Menstrual. “A mulher que aprende a se conhecer e a ler a linguagem do seu corpo para poder transcender esse período está efetivamente capacitada para cuidar de si”.