A incerteza em pauta no curso do jornalismo

A dualidade entre impresso e on-line não é de exclusão, mas de coexistência, frisa Luciana Coelho

Foto: Liz Dórea

Por Liz Dórea

O propósito de laboratório do Jornal do Campus foi levado ao limite: com os rumos de sua própria versão impressa em disputa, nosso periódico vivencia, por razões distintas às da imprensa profissional, uma incerteza que paira o futuro de todo o jornalismo. Nesta edição metalinguística, Luciana Coelho, editora da Folha de S. Paulo formada pela ECA, expõe suas impressões sobre o curso, o modelo jornalístico vigente e as perspectivas do papel na imprensa atual.

JC: O curso de jornalismo da ECA ainda é o mais conceituado do país e a produção de impressos é uma diretriz importante do projeto pedagógico. Como você avalia o legado dessas disciplinas na sua formação?

Luciana Coelho: Pra mim, foram as únicas disciplinas relevantes que fiz na ECA. As únicas que me deram algum senso prático da profissão, alguma noção do que é fazer jornalismo.

Se não, cairíamos numa redação sem nenhum preparo. Não adianta essa masturbação intelectual de pensar o futuro do jornalismo e não tentar fazer de um jeito melhor. Sobretudo quando a profissão está tão em crise. Se não acharmos soluções num contexto relativamente pequeno, como é o caso da universidade ou da São Remo, como vamos pensar em veículos maiores?

Eu provavelmente seria uma jornalista pior se não tivesse essa experiência nos laboratórios. Ou talvez aprendesse as mesmas coisas, mas certamente demoraria muito mais.

A produção de impressos desenvolve competências que podem ser abolidas pela lógica produtiva digital?

Produzir um impresso gera uma noção de hierarquização de fatos e notícias que é muito importante no jornalismo. E essa é uma competência necessária, inclusive, para fazer um jornalismo digital bem feito.

O on-line é menos pedagógico. Por quê? Por causa da natureza das plataformas. No, papel cabem menos coisas, é preciso ser seletivo.

Você acompanhou, enquanto ombudsman, a evolução de uma turma no Jornal do Campus. O que esse outro ponto de vista da mesma experiência evidenciou sobre nossa formação superior em jornalismo?

É difícil avaliar a partir da ECA porque o vestibular é um funil. As pessoas que chegam ali são a elite da elite da elite e já têm um repertório. Eu não sei o quanto dessa formação foi adquirida na faculdade ou antes dela.

Mas falta muita coisa. Eles tentam dar pra gente uma formação humanista ampla, mas um professor de economia na ECA não vai ser um grande professor de economia porque, se fosse, lecionaria numa faculdade de economia. E assim por diante.

Tenho dúvidas se jornalismo deveria ser um curso de quatro anos. Tendo a achar que deveria ser um tipo de mestrado, de especialização, mais voltado para questões práticas. Não é melhor que alguém que queira ser jornalista se forme em história, economia, ciências sociais, direito, cinema ou qualquer outra área de afinidade? Chegue mais bem formado, tenha um arsenal maior e depois se especialize, aí, sim, em treinar as ferramentas?

Nos laboratórios, os próprios repórteres se articulam para entregar os jornais. O que isso proporciona na formação humana?

Jornais-laboratórios oferecem um contato com o público que não há num veículo maior. Talvez com a fonte, com o seu chefe, com pessoas mais ou menos parecidas com você, mas não com o público-alvo em geral. Você consegue despregar a bunda da cadeira, ver mais coisas, circular mais, receber feedback. E feedback deveria ser a base do trabalho do jornalista. Não aqueles em caixa de diálogo no pé da matéria. Ali, há muito pouca opinião que se aproveite. Então, se você não tiver essa base na faculdade, vai ter quando?

Como você caracteriza a relação entre o jornalista e o público hoje?

É bem ruim. Criou-se um falso paradoxo entre a grande imprensa e a imprensa nova e, na verdade, isso não existe. O que existem são bons jornalistas e maus jornalistas. E eles podem estar tanto na Rede Globo como na Mídia Ninja. Mas a percepção do leitor está muito contaminada por sua coloração partidária. Chegamos num nível em que as pessoas simplesmente não querem abrir espaço pro contraditório.

Nessa bolha onde as pessoas pensam parecido, agem parecido, consomem as mesmas coisas, achamos que o mundo inteiro pensa desse jeito. Então, contato é muito importante. Não escrevemos pros nossos amigos. Escrevemos pro público e, no público, há todo tipo de gente.

Mario Vargas Llosa dizia que a melhor forma de se começar o dia era lendo o jornal impresso. Os millenials, porém, não se conectam tanto com essa materialidade. Como a produção de um periódico impresso, que é uma experiência jornalística mais analógica, estimula o repertório dos jornalistas dessa geração?

Até eu. Vou fazer 40 anos e leio pouco jornal. Eu recebo a Folha em casa, mas só vou olhar o impresso quando chego aqui na redação. Acho que, até pelo conforto, essa modalidade sai perdendo muito em termos de informação imediata. Mas tem gente que nunca se acostumou a ler num kindle, num iPad, no celular. É difícil porque é muito uma questão de gosto. Mas a versão hard copy acaba sendo a mais apurada, a mais bem pensada. E, quando se quer uma informação elaborada assim, muita gente prefere o papel. Eu, honestamente, não acho que jornal impresso vá acabar. Acho que vai mudar. Muitas publicações tendem a deixar de ser diárias, por exemplo, se tornando mais enxutas, mas elas ainda têm lugar. O problema é que isso precisa ser repensado. Não adianta continuar fazendo jornal em papel do jeito que se fazia há vinte anos. Isso, realmente, não faz sentido.

Para além das demissões em massa, o sacrifício de versões impressas tem sido uma operação de corte de gastos explorada por alguns veículos brasileiros. O que isso nos diz sobre o modelo de mídia vigente?  

É uma questão de custo. Obviamente, as versões digitais atingem muito mais gente hoje e eu acredito que o impresso vai se tornar um jornalismo de nicho. Mas não que vá acabar. Quem diria há 5 anos que newsletters iam voltar a ser uma ferramenta?

Nós temos um problema de curadoria. Há muita informação tentando captar nossa atenção. E eu ainda acho mais fácil ver o que é importante aqui [balança um caderno da Folha] do que aqui [deita os olhos no computador].

Mas não se pode ter um pensamento tão binário: ou é isso ou é aquilo. São coisas complementares, não excludentes.

Levamos em conta a hipótese de recorrer à iniciativa privada para impedir a extinção dos jornais impressos do curso. Nas grandes redações, essa prática de financiamento também é recorrente. É possível preservar a autonomia editorial quando outros interesses, além do público, estão em jogo?

Depende de como for feito. A parte comercial precisa ser completamente dissociada da editorial. Se as pessoas que cuidam das questões comerciais não forem as mesmas que produzem o material jornalístico, não vejo problema.

Quando falo que temos que atender a demanda do público, é do público. Não do anunciante.

Isso faz lembrar que somos introduzidos à prática do ofício jornalístico na faculdade, mas não tanto ao modelo de negócios e à realidade econômica das redações. O baque é muito grande?

Muito. Ainda hoje, jornalistas são despreparados em termos de gestão. Agora que sou editora, tenho um pouco mais de noção, mas, mesmo aqui na redação, não se aprende nada sobre isso. Até as pessoas que lidam com essas questões são relativamente despreparadas, se você comparar com outros tipos de negócio. Sobretudo por conta da questão ética. É preciso trabalhar com o seu cliente, que é o seu leitor, mas também o seu anunciante, que é o seu financiador. E não se pode misturar essas duas estações. Uma empresa não costuma ter esse conflito de interesse que existe em jornalismo. Então, faz muita falta, sim, na faculdade.

Nesse sentido, cursos de jornalismo estão preparando repórteres à altura da realidade da profissão ou estamos formando jornalistas idealistas?

Quando fui ombudsman do JC, fiquei chocada com o quanto as pessoas eram boas em termos de repertório, mas também ativistas. E não dá pra ser ativista em jornalismo. O nosso “ativismo” tem que ser o de querer levar a informação para capacitar o leitor a tomar suas próprias decisões.

Mas há e sempre houve um senso idealista e pouco prático. Não temos que nos comportar como executivos galgando postos, mas também não com essa abnegação. Porque jornalista, em geral, ganha mal? Não nos enxergamos, não nos damos ao valor. Somos muito pouco profissionais quando saímos da faculdade, nesse sentido. Acreditamos que estamos ajudando, não realizando um trabalho que precisa ser decentemente remunerado. Boa intenção não paga conta.

Precisamos fazer exigências e cumprir exigências. E, nisso, as faculdades em geral fazem um desserviço. Por que não propor parcerias de laboratórios com veículos de imprensa? As escolas e as empresas de jornalismo deveriam pensar nessas coisas juntas, pelo menos para dar uma noção de realidade.

Não adianta ficar lá dentro sonhando que vamos escrever para salvar o mundo.

Como fidelizar leitores e proteger a credibilidade do jornalismo numa era em que as informações se propagam de forma cada vez mais disruptiva e autônoma?

Por muito tempo, nós vimos nossa profissão como uma espécie de missão e não como um produto, feito outro qualquer. Nunca se pensou em valorizar o profissional e fortalecer as marcas jornalísticas como uma fonte de informação crível. Um jornalista não é um sujeito que sentou ali, inventou uma história, escreveu o que achava. Até existe isso dentro do jornalismo profissional, mas se chama coluna de opinião.

É preciso distinguir reportagens, que levam em consideração mais de um lado, de uma fake news. E entregar o que se promete: não adianta dizer que mostra todos os lados da notícia e mostrar um só. Um só é militância.

No fim das contas, você tem que atender a necessidade do seu consumidor, que é o seu leitor. Caso contrário, a pessoa vai ver uma série no Netflix, dar um volta, assistir um troço no Youtube. Hoje, a gente não concorre só com outros veículos de mídia.

Se você não se mostrar relevante, vai ser trocado por qualquer outra coisa.